Intuitivamente, todos já sabíamos que as causas empresariais são mais complexas que as civis. Não apenas por envolverem múltiplas partes, perícias difíceis e incidentes, mas também porque as relações regidas pelo direito comercial são muito mais dinâmicas. Os meandros e a versatilidade dos negócios empresariais, sempre em constante evolução, exigem dos magistrados conhecimentos técnicos específicos e familiaridade com as práticas de mercado.
Mas, intuições, ainda que compartilhadas largamente, carecem daquela objetividade exigida pelo conhecimento científico. Ademais, não servem de fundamento para a tomada de decisões importantes como as que afetam a organização judiciária.
Sempre que cria, desmembra ou extingue divisões (comarcas, circunscrições, regiões etc), o Poder Judiciário deve naturalmente cercar-se de dados confiáveis sobre a quantidade de processos que justifica a reorganização pretendida. A Res. 82/11-TJSP exige para a criação de uma nova vara cível a distribuição de pelo menos 1.800 novos processos por ano. Este número, porém, foi fixado em vista da carga de trabalho associada a um processo cível comum (demanda de consumidor contra empresa de telefonia, por exemplo), e não a ações empresariais complexas (disputas societárias, recuperações judiciais, propriedade industrial etc).
Os processos de falência e recuperação judicial equivalem, em média, a três processos civis comuns
Por tal razão, quando visa à implantação de juízos especializados em determinadas matérias jurídicas, além da quantidade de processos em números absolutos, deve-se levar em conta também a maior ou menor carga de trabalho dos feitos abrangidos pela especialização. Na criação de juízos especializados em direito comercial, por exemplo, não se pode desconsiderar que as causas empresariais são mais complexas que as civis.
Mas, como estabelecer objetivamente esta relação? A cada processo de direito empresarial corresponde exatamente que número de feitos de direito civil? Como mensurar, em suma, a maior complexidade das causas empresariais?
Estas perguntas não tinham resposta até recentemente. Graças, no entanto, aos poderosos instrumentos científicos da jurimetria, é possível hoje calcular estatisticamente a relação de complexidade entre as causas empresariais e civis, a partir da quantificação das diferentes cargas médias de trabalho associáveis aos processos de cada espécie.
A recente criação de três varas especializadas em direito empresarial em São Paulo embasou-se em estudos jurimétricos, que calcularam a quantidade de ações que serão distribuídas anualmente para essas varas, bem como avaliaram a carga de trabalho envolvida na resolução delas. Para a jurimetria, a diferença de complexidade entre ações empresariais e civis é calculada em função da “viscosidade processual” (o conjunto de propriedades intrínsecas a um processo judicial que torna a sua movimentação mais complexa e seu andamento potencialmente mais lento).
Com base na viscosidade processual, o ramo da jurimetria dedicada ao estudo quantitativo dos fluxos das ações judiciais (a reologia processual), conseguiu estimar, pela primeira vez, o sobre-esforço despendido pelos juízes para impulsionarem processos empresariais.
O cálculo da viscosidade processual compreendeu a análise das movimentações de todos os processos distribuídos ao longo de três anos (de 2013 a 2015) nas 44 varas cíveis e nas duas varas de falência do Foro Central de São Paulo. Foram analisados 331.402 processos. Comparou-se a quantidade de feitos concluídos e o tempo gasto pelos juízes para a tomada de decisões, em cada espécie de causa.
Chegou-se, assim, à conclusão de que os processos de falência e recuperação judicial equivalem, em média, a três processos civis comuns; e os demais processos empresariais a 2,09. Esta é a medida da complexidade das causas empresariais. A um feito falimentar ou recuperacional está associado o triplo da carga de trabalho de um processo cível comum. A uma causa societária ou patentária, mais ou menos o dobro da carga de trabalho.
Assim, as novas varas empresariais receberão carga de trabalho equivalente a de no mínimo 3.349 processos cíveis comuns, acima, portanto, dos 1.800 feitos anuais, exigidos pela Res. 82/11-TJSP.
A quantificação da complexidade das causas empresariais demonstra que os juízes especializados acabam se responsabilizando por processos em quantidade suficiente para justificar a reorganização judicial, afastando o fundado receio de sub aproveitamento dos recursos disponíveis.
Mostra também que a especialização é igualmente benéfica para as varas cíveis, cuja carga de trabalho reduz-se “mais”, isto é, no triplo ou em dobro da quantidade de processos redistribuídos às especializadas. Liberadas das causas complexas, podem se concentrar no julgamento de ações de baixa viscosidade, para as quais suas rotinas de trabalho estão mais bem ajustadas.
O relatório completo da pesquisa está disponível em abjur.github.io/tjspBook/
Fábio Ulhoa Coelho e Marcelo Guedes Nunes são professores da PUC-SP. O primeiro é presidente do conselho científico da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) e o segundo presidente da mesma associação
Fonte: Valor Econômico- 2/3/2017-