Uma questão polêmica dividiu os ministros da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e obrigou um integrante de um outro colegiado a defini-la. Os magistrados analisaram a possibilidade de uma das partes de um processo requerer a desistência após o recurso já ter sido publicado em pauta e designados turma e relator. Após acalorado debate, a renúncia foi aceita por maioria.
A possibilidade é regulamentada pelo Código de Processo Civil (CPC) e sempre foi aceita pelo tribunal superior sem maiores discussões. Em fevereiro, entretanto, um caso envolvendo o Banco do Brasil fugiu à regra. O relator do processo, pelo qual se discute se o banco é obrigado a fornecer o endereço de um cliente que emitiu cheque sem fundos, votou pela homologação do pedido. A ministra Nancy Andrighi, entretanto, defendeu que, em casos relevantes, a análise do mérito da questão poderia ser feita apesar da desistência.
No caso, a autora do processo – uma pessoa física – pediu a desistência do recurso no dia 23 de setembro de 2013, um dia após a inclusão em pauta do caso. O julgamento seria realizado no dia 1º de outubro. De acordo com os votos proferidos, o requerimento foi feito por conta do “grande lapso temporal” entre a interposição do recurso e sua inclusão em pauta, o que teria gerado a falta de interesse em seu prosseguimento.
Em seu voto, Nancy declarou que a desistência após a publicação da pauta pode impedir que temas importantes sejam apreciados pelo STJ. Para ela, analisar o processo mesmo que haja um pedido de renúncia faria com que todas as turmas tivessem jurisprudência formada sobre os mais diversos assuntos. “O pedido de desistência não deve servir de empecilho para que o STJ prossiga na apreciação do mérito recursal, consolidando orientação que possa vir a ser aplicada em outros processos versando sobre idêntica questão de direito”, afirma a ministra em seu voto.
De acordo com a ministra, a desistência tem o poder de influenciar a atividade do tribunal, e, em última instância, permite que as partes manipulem a jurisprudência do STJ sobre determinados assuntos. Isso ocorreria, por exemplo, com empresas ou pessoas físicas que atuam em vários processos sobre um mesmo tema. Ao desistir de recursos, a parte conseguiria fazer com que uma turma deixasse de analisar determinado assunto, e isso poderia fazer com que o tema não chegasse à seção, já que não haveria posicionamentos em sentido oposto.
“Em síntese, deve prevalecer, como regra, o direito da parte à desistência, mas verificada a existência de relevante interesse público, pode o relator, mediante decisão fundamentada, promover o julgamento do recurso especial para possibilitar a apreciação da respectiva questão de direito, sem prejuízo de, ao final, considerar prejudicada a sua aplicação à hipótese específica dos autos, diante da desistência”, destaca a ministra em sua decisão.
O posicionamento foi seguido pelo ministro Sidnei Beneti e o julgamento terminou empatado. Para definir a questão foi chamado o ministro Marco Buzzi, da 4ª Turma, que votou com o relator. Para o magistrado, a argumentação de que o STJ deve criar teses sobre determinados assuntos não pode inviabilizar a desistência. “Não se mostra viável impedir uma faculdade legítima da parte sob a alegação de que a desistência de recurso pode constituir uma estratégia processual”, afirma.
Em seu voto, entretanto, Buzzi diz que já ocorreram, “em casos específicos”, situações em que as partes tentaram manipular a jurisprudência do tribunal. Mesmo assim, destaca que o artigo 501 do CPC possibilita “a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso”.
Para o jurista Ives Gandra da Silva Martins, mesmo em casos importantes, a parte deve ter direito à desistência. “Quando o cidadão vai a juízo, ele é o titular da ação, não o Poder Judiciário. Ele [cidadão] tem o direito de deixar de discutir e deixar que a matéria saia do cenário”, afirma.
Já o advogado Fernando Facury Scaff, professor da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro e Scaff, diz que, adotando posicionamento contra a desistência, o STJ se aproximaria do Supremo Tribunal Federal (STF) na análise de ações diretas de inconstitucionalidade (Adins). Isso porque esses processos são julgados mesmo que a lei já tenha sido extinta, já que durante sua vigência a norma produziu efeitos. Entretanto, acrescenta Scaff, essa prática não se aplicaria nos demais casos, que tratam de direitos específicos, e não abstratos como as Adins.
Fonte- Valor Econômico- 26/5/2014; https://www1.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/