Por força do artigo 93, IX, da Constituição Federal, toda decisão judicial tem de ser necessariamente fundamentada. Cabe ao juiz decidir, a partir da análise dos fatos e das provas trazidas ao processo, conjugados com a letra da lei, os princípios jurídicos norteadores, os entendimentos jurisprudenciais e outras fontes do Direito, como doutrina e costumes, sem esquecer a equidade, que é o que assegura o senso de justiça da decisão. Todo esse complexo pluralismo de normas, percepções e conhecimentos forma o convencimento do juiz sobre o caso em julgamento e daí, enfim, a decisão. Mas esse esforço intelectual não garante a aceitação absoluta e, justamente por isso, elas são, em geral, passíveis de discussão em instâncias superiores. Cada decisão é um espelho de entendimentos e elaborações de um magistrado e, mesmo reformada, por manifestar posicionamento diferente ou destoante do predominante, ela traz em si elementos que podem oferecer subsídios ao debate jurídico e à própria transformação e evolução do Direito pela incessante necessidade de se olhar e de se compreender as várias perspectivas da realidade em que os conflitos brotam.
Em um caso julgado pela juíza Denise Amâncio de Oliveira, na 9ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, ela manifestou entendimentos que contrariam a jurisprudência dominante e até uma Súmula do TST. A decisão foi reformada, em parte, mas ela revela uma face da convicção da juíza, demonstrando que o debate em torno do tema ainda não cessou e voltará sempre para a dimensão do caso e de suas variantes concretas. A diversidade de interpretação deve sempre servir como sinal de alerta a todos os que buscam conhecer o direito para o exame da vida que segue em minuciosa complexidade. Na evolução histórica do direito, há um papel relevante desempenhado pela decisão dissidente, como sinal da abertura do campo argumentativo, principalmente quando se tem em mente a importância de se conhecer a experiência das relações humanas traduzidas para o direito.
A ação trabalhista foi ajuizada por um porteiro contra sua empregadora, uma empresa de serviços gerais. E ele veio à Justiça denunciar uma situação corriqueira nessa área: é que, embora contratados para cumprir jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso, o intervalo obrigatório (que pela lei deveria ser de, no mínimo, uma hora) acaba sendo reduzido a uma pausa mínima, que mal dá para fazer uma refeição apressada. No caso, o porteiro trabalhava das 19h às 07h da manhã e tinha apenas 10 minutos de intervalo para jantar e descansar.
De acordo com a juíza, em grande parte do período contratual, o horário do intervalo foi pré-assinalado, com a marcação de uma hora, o que é permitido por lei. Mas o ex-empregado conseguiu fazer prova de que, na verdade, tinha somente 10 minutos para refeição. Isso foi confirmado pela única testemunha ouvida, que também trabalhou como porteiro por cinco anos. Havia um porteiro por turno em cada prédio, o que acabava impossibilitando que eles se afastassem da portaria.
Como a própria empresa chegou a pagar a verba ao porteiro, por algum tempo, a juíza deferiu ao reclamante, como extra, por força do disposto no §4º do art. 71, da CLT, 50 minutos por dia de trabalho, ou seja, os minutos faltantes para se completar uma hora de intervalo, acrescidos do adicional convencional. É nesse ponto que a juíza manifesta entendimento divergente da Súmula 437 do TST, que determina o pagamento integral do intervalo irregularmente concedido. E ela explica por quê:
“Observe-se que não tem o autor direito à pausa integral de 60 minutos já que usufruída parte do intervalo, não acolhendo este Juízo, data vênia, o entendimento esposado no item I da Súmula nº 437 do TST, uma vez que o citado art. 71, §4º, da CLT refere-se expressamente à remuneração do período correspondente ao intervalo não concedido, não se podendo, então, aí incluir o tempo de intervalo já concedido. O deferimento integral do intervalo em todas as situações importaria em se tratar de forma igual casos diferentes, concedendo-se 60 minutos extras a empregados que usufruíram apenas 05 minutos de intervalo e àqueles que usufruíram 50 minutos, por exemplo, o que fere ao mais comezinho senso de equidade, o qual deve nortear também a interpretação das normas legais”.
Ela também indeferiu os reflexos dessas horas extras nas demais parcelas salariais, ao fundamento de que “não obstante a ausência de fruição do intervalo intrajornada deva ser remunerada como hora extra, nos termos do já citado art. 71, §4º, da CLT, tal remuneração tem natureza indenizatória no caso em exame, uma vez que o obreiro já recebeu pelas eventuais horas extras laboradas, como comprovam as fichas financeiras e pelas 12 horas de trabalho, não tendo a ausência da pausa em exame implicado em prorrogação efetivada jornada laboral”.
Hora ficta noturna
A juíza entendeu que a situação vivida pelo reclamante não gera direito ao recebimento de horas extras pela redução da hora ficta noturna e indeferiu também esse pedido. Na análise da magistrada, a jornada contratada, expressamente autorizada pelas CCTs, era de 12 horas de trabalho e por essas o empregado foi devidamente remunerado, estando aí já contemplada a redução da hora ficta noturna. “Isso porque o labor pactuado, de 19:00 às 07:00h, com 01 hora de intervalo, corresponderia somente a 11 horas efetivamente trabalhadas. Quer dizer, apesar de laborar 11 horas, recebia o autor 12 horas, já tendo sido remunerada a redução da hora noturna”, fundamentou a magistrada.
Prorrogação da jornada noturna
Entendeu ainda a julgadora que não havia prorrogação da jornada em relação ao trabalho prestado entre as 05h e às 7h da manhã, já que esse período fazia parte da jornada normal de trabalho do reclamante era de 12 horas corridas. Por isso, não seria aplicável o disposto na Súmula nº 60 do TST, e nem a norma do art. 73, § 5º, da CLT. Ela fundamentou ainda sua decisão nos instrumentos coletivos da categoria, pelos quais “considera-se noturno o trabalho executado entre as 22 (vinte e duas) horas de um dia e as 5 (cinco) horas do dia seguinte…”
“Assim, são válidos os ajustes coletivos, por força do art. 7º, inciso XXVI, da CF/88, até porque as partes convenentes melhor conhecem as peculiaridades da prestação de serviços e, deste modo, ao transigirem nalguns pontos, é certo que obtêm benefícios em outros, de forma que é bastante razoável a adoção da teoria do conglobamento quando se trata de exame de direito decorrente de norma coletiva, não se podendo pinçar somente o que é favorável a uma das partes, seja empregado ou empregador”, destacou a juíza, indeferindo o pedido de horas extras pela prorrogação da jornada noturna.
Recurso do empregado
Ao analisar o recurso do reclamante, nesses itens específicos, a 4ª Turma do TRT-MG manifestou entendimento divergente e modificou a decisão, ampliando a condenação da empregadora ao pagamento de uma hora por dia trabalhado, a título de intervalo intrajornada, além de uma hora extra noturna por dia laborado, em razão da hora noturna ficta. Foi também deferido o pagamento de adicional noturno pelas horas trabalhadas após às 5h, na jornada cumprida das 19h às 07h, e o pagamento em dobro dos feriados laborados, com devidos reflexos.
( 0002285-76.2013.5.03.0009 ED )
Fonte- TRT-MG- 22/4/2014.