As fotos de alguns dos maiores empresários e executivos do País sendo levados para a carceragem da Polícia Federal têm aparecido na maioria dos treinamentos internos que tentam estancar desvios de conduta no dia a dia das corporações. No ano passado, milhares de funcionários, do baixo ao alto escalão de empresas brasileiras, tiveram de assistir a pelo menos uma palestra sobre como e por que combater a corrupção. Marcelo Odebrecht, ex-presidente da maior empreiteira do País, e Otávio Marques, da Andrade Gutierrez, apareceram em algumas delas para ilustrar o capítulo “por que não fazer”.
Catequizar os funcionários é uma das primeiras tarefas das equipes de “compliance”, o mais novo departamento de algumas das maiores companhias do País. Essa área, que já integrava a estrutura de multinacionais, é responsável por investigar e conter iniciativas fraudulentas nas empresas, especialmente no relacionamento com o poder público.
Nos últimos dois anos, o que tem se visto é uma verdadeira corrida dos grupos nacionais para criar essa estrutura internamente. Uma pesquisa da consultoria Deloitte com 103 empresas mostra que, no ano passado, 65% dos entrevistados afirmaram já ter um programa de “compliance”. Em 2013, o percentual era de 30%. “Para atender à demanda por esse tipo de serviço, nosso time teve um acréscimo de 50% em dois anos”, diz o sócio-líder de consultoria em gestão de riscos da Deloitt, Ronaldo Fragoso. A empresa tem 400 profissionais dedicados à investigação.
Dois acontecimentos estão por trás do interesse súbito das companhias por ser e parecer decentes: a Operação Lava Jato da Polícia Federal – que investiga esquema bilionário de desvio e lavagem de dinheiro envolvendo Petrobras, empreiteiras e políticos – e a Lei Anticorrupção, em vigor desde 2014.
A lei responsabiliza a empresa por atos de corrupção praticados por funcionários e fornecedores, com punições que incluem multa de até 20% do faturamento da companhia. Mas o texto indica também que as sanções podem ser amenizadas se a empresa provar que adota mecanismos para inibir a corrupção, como treinamento, investigações internas e canais de denúncia.
Se ficar comprovada a eficácia dos programas, a multa pode ser reduzida a zero, em alguns casos. “O prejuízo financeiro e de imagem é inacreditável, e empresários estão começando a entender isso”, diz o sócio da PwC, Jerri Ribeiro, especialista em compliance. “O aprendizado dos últimos 12 meses é de que a corrupção pode destruir uma empresa ou acabar com seus planos de crescimento.”
A Petrobras sabe bem disso. No centro das investigações da Lava Jato, a empresa montou uma das maiores e mais caras estruturas de compliance de que se tem notícia no Brasil. Cerca de mil funcionários são alvo da investigação interna que já levou à demissão 17 deles entre janeiro e setembro de 2015. Outros 61 foram suspensos e 94 receberam advertências.
As empreiteiras que caíram junto com a petroleira no emaranhado da Lava Jato também se viram obrigadas a criar estruturas de combate à corrupção. A Camargo Corrêa anunciou, há duas semanas, um programa de delação interna para incentivar os 15 mil colaboradores e ex-funcionários a denunciarem atos ilícitos relacionados à operação da Polícia Federal. A iniciativa, batizada de Programa Interno de Incentivo à Colaboração (PIIC), é parte do acordo de leniência que a construtora firmou com o Ministério Público Federal e com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e que inclui o ressarcimento de R$ 804 milhões. Para tocar a área de compliance, a empresa contratou, em julho do ano passado, o executivo Flávio Rímoli, ex-Embraer.
Criar um canal de denúncias, como o da Camargo Corrêa, é um das primeiras medidas adotadas pelas equipes. “O grande desafio, no entanto, é cultural”, diz Shin Jae Kim, sócia do escritório Tozzini Freire responsável pela área de compliance desde 2007. “A mudança de hábito passa obrigatoriamente pela conscientização dos sócios e dos principais executivos. São eles que vão liderar esse processo.”
Por isso, os especialistas em medidas anticorrupção definiram como “desastrosa” a declaração de Marcelo Odebrecht à CPI da Petrobras em setembro de 2015, quando ele chamou os delatores de “dedos-duros”. Herdeiro da maior construtora do País, Marcelo disse que, em casa, quando as duas filhas brigavam, levava bronca a que dedurou, e não a que fez a coisa errada. Fontes afirmam que a Odebrecht também está implementando uma área de compliance internamente. A empresa não comentou.
Adequação às novidades pode auxiliar na previsão de problemas
Embora a pressão sobre as empreiteiras da Lava Jato seja maior, elas não são as únicas na corrida para criar o novo departamento e dar início a investigações internas. A Triunfo Participações e Investimentos instituiu um canal externo de denúncia e um curso sobre código de conduta. “Já tínhamos um programa de compliance, mas esse agora é mais formal e compatível com as regras anticorrupção”, diz o diretor-presidente da empresa, Carlo Bottarelli.
O objetivo, diz ele, é preparar os profissionais para situações consideradas “estranhas”. Nos últimos meses, lugares estratégicos da empresa, como a máquina de ponto ou a área do cafezinho, foram “decorados” com frases do tipo “ninguém está vendo mesmo…” ou “mas todo mundo faz assim!”.
Comunicar com clareza as regras de conduta é parte importante do processo. “A primeira orientação que damos aos clientes é: não faça coisa errada, porque o mundo mudou e, agora, o sarrafo é mais embaixo”, diz a advogada Adriana Dantas, sócia responsável pela área de ética corporativa e compliance do escritório Barbosa Müssnich Aragão, que está atuando em cinco investigações no âmbito da Lava Jato.
Quando as denúncias começam a aparecer, os investigadores entram em ação. Em alguns casos, são montadas verdadeiras operações de guerra, com centenas de profissionais envolvidos.
“Chegamos a puxar a caixa postal dos últimos 10 anos de mais de 50 funcionários suspeitos”, diz o sócio da área de compliance e anticorrupção do Souza, Cescon, Barrieu & Flesch Advogados, Ricardo Gaillard. “O volume de documentos coletados gira na base do terabyte.” A análise deles só é possível com a ajuda de softwares.
A política de brindes e presentes também fica mais rigorosa. “Esquece o vinho caro e o whisky. Os novos valores reservados para essa finalidade, no máximo, dão para comprar uma agenda”, diz o advogado Floriano de Azevedo Marques Neto, do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques.
Na Siemens, o funcionário pode pagar o almoço de clientes ou fornecedores se o valor não ultrapassar R$ 150,00. Até os mais baratos devem ser comunicados à equipe de compliance por meio de um aplicativo no celular. Se a conta extrapolar essa quantia e o convidado for do “grupo de risco”, como funcionários públicos, a área recebe um alerta. “Conseguimos evitar em fraudes quase o dobro do orçamento anual da divisão de compliance”, diz Reynaldo Goto, diretor responsável por essa divisão.
A Siemens virou referência no assunto depois que escândalos de pagamento de propina levaram à queda do presidente global, em 2007. As denúncias partiram de dentro da empresa. No Brasil, investigações internas também levaram à descoberta do envolvimento de executivos em esquemas de formação de cartel e fraude de licitações.
Montar um programa como esse custa caro, entre R$ 500 mil e R$ 3 milhões, segundo especialistas. Mas nem toda empresa precisa ter uma estrutura desse porte, difícil de administrar, afirma Ordélio de Azevedo Sette sócio do escritório Azevedo Sette Advogados, que tem feito um trabalho de orientação para empresas menores. “Essa lei pegou e tem preocupado quem ainda não está protegido por um programa de compliance.”
Soluções em compliance ajudam a otimizar os resultados
O interesse das empresas brasileiras em criar um programa de compliance passa também pela pressão de investidores estrangeiros, que têm feito esse tipo de exigência na hora de negociar uma aquisição. Ter essa estrutura pode influenciar o valor dos ativos e ajudar no fechamento de negócios, afirma o advogado Luiz Eduardo Salles, contratado em 2015 para reforçar a equipe de compliance do escritório da Azevedo Sette Advogados. “Ao dar mais segurança, o valor da empresa aumenta.”
O diretor-presidente da Triunfo Participações e Investimentos, Carlo Bottarelli, confirma essa tese. Em agosto do ano passado, a empresa vendeu duas hidrelétricas para a China Three Gorges. “O grupo estava em outra negociação e não fechou negócio porque a empresa não tinha um programa. Como já tínhamos, eles optaram por nossos ativos.”
Outro fator que tem incentivado a corrida pelo compliance é a necessidade de formação de consórcios para disputar licitações. “Se o parceiro não tem um programa efetivo, o risco será maior”, diz Salles. Essa situação se estende aos fornecedores. A subsidiária brasileira da empresa de energia EDP, por exemplo, teve de descredenciar um quarto dos fornecedores por eles não se enquadrarem nas regras da empresa.
“O compliance entrou na pauta das companhias e ganhou força para mudar a cultura das corporações”, diz a advogada Patricia Agra, contratada há um mês para integrar a equipe de compliance do escritório L.O. Baptista.
Além disso, com o constante aumento de obrigações fiscais que o governo vem adotando, além de se adaptarem, as empresas precisam ter certeza se o que foi entregue está efetivamente correto. “O sistema oferecido não tem aprofundamento suficiente na validação e dentro de um período de cinco anos podem haver solicitações de ajustes”, alerta Valmir Hammes, especialista em legislação na Senior, empresa de desenvolvimento de softwares para gestão. Segundo o especialista, as dificuldades podem implicar em divergências no recolhimento do Imposto de Renda, por exemplo.
Atentas às essas necessidades, companhias desenvolvedoras de programas buscam oferecer soluções específicas. A Senior, por exemplo, lançou o Auditor Fiscal, ferramenta independente de qualquer sistema de gestão empresarial e disponível via cloud. “Em ambiente web, o gestor consegue administrar a agenda de envio de documentos por área e por envio através de um painel amigável”, detalha Hammes. A solução é oferecida em parceria com a Quirius, empresa que atua com o foco na área fiscal. “São aplicadas mais de 2 mil consistências para validar as informações”, explica Hammes.
17/2/2016.