No dia 12 de abril, uma juíza do trabalho de Vitória, no Espírito Santo, determinou que uma empresa pagasse integralmente uma indenização a um funcionário assim que se esgotem os recursos da defesa em segunda instância judicial.
Germana de Morelo, que é juíza substituta de primeiro grau, determinou a execução da sentença com base no entendimento do Supremo Tribunal Federal, de 2016, de que um condenado em segunda instância já pode começar a cumprir pena, mesmo que ainda haja recursos disponíveis em tribunais superiores. Desde então, juízes de primeira instância podem determinar a execução da sentença quando a segunda instância confirma a condenação.
Esse entendimento foi reafirmado no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 4 de abril de 2018. O Supremo negou um habeas corpus ao ex-presidente e abriu caminho para sua prisão – o petista já estava condenado criminalmente em segunda instância. Em 6 de abril, o juiz de primeira instância Sergio Moro decretou a prisão de Lula. A aplicação do entendimento num processo não-criminal, porém, é controversa.
A Justiça do Trabalho possui três instâncias: Varas do Trabalho (primeira instância), Tribunais Regionais do Trabalho (segunda) e Tribunal Superior do Trabalho (última instância).
O caso em questão
Um engenheiro civil acionou a Justiça para cobrar o pagamento de horas extras e adicional por insalubridade da empresa Ferrostaal, na qual trabalhava. O engenheiro realizava manutenção em um equipamento que armazenava monóxido de carbono – um gás tóxico.
O ex-funcionário ganhou o processo em primeira e segunda instâncias e, de acordo com o portal jurídico Jota, vai receber R$ 1,39 milhão da empresa.
Seguindo o entendimento do Supremo, a juíza também argumenta que o exame de provas ocorre nas duas primeiras instâncias. Como recursos a instâncias superiores – que analisam apenas violações no processo – não têm efeito suspensivo, a juíza determinou “a alienação de bens e pagamento dos valores devidos ao credor quando superadas as instâncias primárias”. Em outras palavras, quando se esgotarem os recursos na segunda instância, a indenização deve ser paga diretamente ao empregado.
O caso gera controvérsia porque, na maioria das vezes, as empresas depositam o valor da indenização em juízo ou penhoram bens quando perdem um processo trabalhista em segunda instância. É uma forma de garantir à Justiça que o valor devido ao funcionário está à disposição, mas de não pagar efetivamente para o funcionário até que todos os recursos da defesa se esgotem.
E pode?
Por se tratar de um caso inédito, a adequação do despacho da juíza do Espírito Santo ainda está em debate. O Nexo conversou com dois professores de direito constitucional para saber, na opinião deles, se a juíza devia aplicar o precedente do Supremo a um processo trabalhista. São eles:
• Rubens Glezer, professor da FGV-SP
• Luiz Alberto David Araújo, professor da PUC-SP
A decisão do Supremo de permitir execução da pena após segunda instância pode ser aplicada a processos trabalhistas e cíveis?
RUBENS GLEZER A pergunta que a gente pode responder, a partir da documentação disponível sobre esse caso específico, é se a argumentação que ela usou [para aplicar a decisão do Supremo a um processo trabalhista] é boa o suficiente.
Como funciona a questão dos precedentes em direito? A gente precisa conseguir, por meios argumentativos, demonstrar que um caso é semelhante a outro de maneira juridicamente relevante.
Vou dar um exemplo. Suponha que um detento da Fundação Casa perde o olho porque tomou tiro de um agente de segurança. Em que medida um outro caso hipotético, em que uma criança fura o olho da outra com uma tesoura, serve de precedente para pensar a indenização da vítima no outro caso? No direito não existe nenhum critério convencional, ou fixo, determinando que um precedente pode ser aplicado se o dano ocorre no olho, ou se é causado por um agente. Tudo isso é muito argumentativo.
No caso desse processo trabalhista, a juíza argumentou que como é possível executar uma condenação antes do trânsito em julgado para casos de [restrição à] liberdade [prisão], é possível determinar a execução em casos que envolvem valores menos importantes do que a liberdade, caso do patrimônio. Se é possível decidir nesse sentido quando se trata de algo tão grave quando privação de liberdade, é possível fazer em outros casos. E o argumento, nas duas situações, é que o exame de provas já foi resolvido [essa tarefa é realizada apenas na primeira e segunda instâncias].
Faltou, porém, a apresentação de uma justificativa mais detalhada. É preciso entender a lógica e os princípios do direito trabalhista. A priori, a decisão da juíza não é abusiva, política ou tecnicamente incorreta, mas a qualidade desse argumento depende de mostrar como o raciocínio da decisão do Supremo se aplica à lógica de processo e execução [de sentença] trabalhista. Isso a juíza não fez, a decisão é bastante curta.
É possível dizer que uma decisão que cria uma inovação como essa, que transita do campo penal para o trabalhista, precisaria obrigatoriamente explicar a lógica que transfere o precedente de um campo para outro. Ou seja, essa transferência é possível, mas a juíza não cumpriu com o dever dela de cumprir o que nós chamamos de ônus argumentativo, que é a necessidade de justificar uma medida.
O Código de Processo Civil determina que quando um juiz vai usar um precedente, é necessário justificar, apenas mencionar que existe um outro caso que vai servir como precedente é insuficiente.
LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO A decisão da juíza que aplicou o precedente de segunda instância do Supremo a um processo trabalhista está errada. Ela não podia fazer isso porque a defesa tem o direito de garantir o juízo [depositar a indenização em uma conta judicial ou penhorar um bem até que todos os recursos se esgotem e o caso seja encerrado]. Os dois bens [liberdade e patrimônio] são completamente diferentes, de naturezas diferentes, não dá para aplicar o precedente do Supremo ao pagamento de uma indenização.
É inegável que um trabalhador tem o direito de receber o dinheiro se há uma decisão favorável da Justiça, mas a indenização dele fica garantida quando o empregador [recorre e deixa] bens em juízo. O juiz pode dizer “essa garantia não é boa, eu quero que deposite em dinheiro”, aí o empregador deposita o dinheiro em juízo, fica à disposição da Justiça enquanto a defesa recorre, não é para pagar imediatamente para o empregado [porque o processo ainda não terminou].
São escalas de bens diferentes. Não se pode colocar no mesmo cesto um direito como liberdade individual e patrimônio, porque se a empresa recorre e deposita o dinheiro em juízo o patrimônio devido ao empregado está garantido até que ocorra uma sentença final.
A execução provisória de sentenças em segunda instância no caso de processos trabalhistas e cíveis já ocorre há muito tempo. Na maioria das vezes, o juiz determina a execução provisória e a defesa apresenta embargos de execução, alegando que prefere depositar a indenização em juízo ou colocar um bem a penhora enquanto recorre da decisão. A defesa pode argumentar que a execução não é definitiva, está incorreta, mas que vai garantir a disponibilidade dos recursos para pagamento de indenização em juízo, mas não à disposição do empregado porque ainda é possível apresentar recursos. Ou seja, esse valor é depositado como garantia, não diretamente ao empregado.
No processo criminal isso não existe, não tem como “deixar a liberdade como garantia”. Ter a liberdade pessoal em xeque pelo risco de prisão e a execução pecuniária são coisas completamente diferentes.
Um dos argumentos dos ministros do Supremo para permitir a prisão em segunda instância era o risco de prescrição dos casos [quando o Estado demora para julgar ou executar a pena e o processo caduca]. Os processos trabalhistas e cíveis, porém, não prescrevem. Se a ação foi ajuizada, a prescrição está interrompida.
Fonte: NEXO, por Paulo Flores, 20.04.2018-
http://www.granadeiro.adv.br/clipping/doutrina/2018/04/24/segunda-instancia-judicial-agora-define-tudo-fica-lei-trabalhista