A doutrina brasileira tem apresentado duas teses acerca da inteligência da regra que passou a estabelecer rol de hipóteses de cabimento de Agravo de Instrumento — patente que o Código de Processo Civil de 2015 queira estancar a prática de sua interposição constante, a resultar em sobrecarga dos tribunais.
Uma tese, a de descabimento do mandado de segurança, já que cabível recurso — imediato ou não, conforme a natureza da decisão, abrangida ou não na relação (taxativa) dos incisos do artigo 1.015, do CPC de 2015 — tese na qual se alinham várias obras publicadas após o início de vigência do novo CPC (por todos, Theodoro Junior. “Curso de direito processual civil”. V. 3, 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 1.026) e que observa a própria Exposição de Motivos do Ministro Fux, in verbis:
Ressalte-se que, na verdade, o que se modificou, nesse particular, foi o momento da impugnação, pois essas decisões, de que se recorria, no sistema anterior, por meio de agravo retido, só eram mesmo alteradas ou mantidas quando o agravo era julgado, como preliminar de apelação. Com o novo regime, o momento de julgamento será o mesmo; não o da impugnação.
Outra tese, a de interpretação extensiva dos incisos do artigo 1.015, referido (por todos, Didier Jr. Fredie. Curso de direito processual civil. v. 3. 13. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 209):
As hipóteses de agravo de instrumento estão previstas em rol taxativo. A taxatividade não é, porém, incompatível com a interpretação extensiva. Embora taxativas as hipóteses de decisões agraváveis, é possível interpretação extensiva de cada um dos seus tipos.
Tradicionalmente, a interpretação pode ser literal, mas há, de igual modo, as interpretações corretivas e outras formas de reinterpretação substitutiva. A interpretação literal consiste numa das fases (a primeira, cronologicamente) da interpretação sistemática. O enunciado normativo é, num primeiro momento, interpretado em seu sentido literal para, então, ser examinado crítica e sistematicamente, a fim de se averiguar se a interpretação literal está de acordo com o sistema em que inserido.
Sobre a segunda tese, permito-me lembrar que o CPC de 1939 também alinhava hipóteses de cabimento de Agravo de Instrumento. E que Lopes da Costa, comentando a regra de seu artigo 842, depois de proclamar que o respectivo rol era redundante e deficiente, procurava subsidiá-lo, apoiado na jurisprudência, quando, por exemplo, aludia às omissões, como a da sentença homologatória de liquidação do imposto nos inventários com interessados incapazes (que teriam de prosseguir no processo de partilha), já que apelação não caberia, pois a sentença não era final. Dizia o Mestre (Direito Processual Civil Brasileiro, Vol. III, São Paulo: RT, 1945, p. 225): a jurisprudência tem procurado encaixar a espécie no erro de conta (art. 842, n. X). Nenhuma crítica formulava a tal atitude exegética, ainda que diante de sua afirmação acerca do Agravo, de que sua admissibilidade é regulada por uma casuística positiva [e] a regra é, pois, que somente cabe agravo nos casos expressamente admitidos (idem-idem, p. 224).
De qualquer forma, Lopes da Costa não adiantaria solução para o problema, já partisse, embora, de dubiedade interpretativa. Nenhuma das duas alternativas expostas, porém, resolve o problema de modo satisfatório: a primeira, porque não conjura a lesão de direito e faz por prolongá-la até o julgamento da apelação; a segunda, porque quebra o sistema da irrecorribilidade dos interlocutórios. De qualquer modo, a previsão legal de recurso, mesmo que a ser julgado em momento ulterior, tem sido considerada suficiente para afastar a cogitação do mandado de segurança.
Por outro lado, sem fundamentação coerente, a doutrina tem afastado o mandado de segurança – ao argumento de que o novo CPC não haveria de sancionar o velho sucedâneo recursal. Dizemo-lo, porque a Exposição de Motivos de Buzaid, como é ressabido, aludindo à praxe forense (que surgiu no CPC de 1939, ante a falta de bastante solução doutrinária, e que perdurou no CPC de 1973, ante a ausência de efeito suspensivo do Agravo), jactava-se de havê-la eliminado, por generalizar o agravo como recurso cabível de todas as decisões interlocutórias. Dizia Buzaid, sobre o CPC de 1939:
Os recursos de agravo de instrumento e no auto do processo (arts. 842 e 851) se fundam num critério meramente casuístico, que não exaure a totalidade dos casos que se apresentam na vida cotidiana dos tribunais. Daí a razão por que o dinamismo da vida judiciária teve de suprir as lacunas da ordem jurídica positiva, concedendo dois sucedâneos de recurso, a saber, a correição parcial e o mandado de segurança.
A experiência demonstrou que esses dois remédios foram úteis corrigindo injustiças ou ilegalidades flagrantes, mas representavam uma grave deformação no sistema, pelo uso de expedientes estranhos ao quadro de recursos.
Não tem havido, porém, ao advento do CPC de 2015, a devida interpretação sistemática. Vamos demonstrá-lo, a partir de hipótese clássica de não cabimento de agravo, embora o prejuízo resultante. Por exemplo, o juiz indefere perícia imprescindível. Diante do fato probando, a depender do conhecimento especial de técnico, por insuprível (artigo 464, §1º, I, a contrario sensu), teria de ser deferida. Ilusão a parte contar com a possibilidade do ganho de causa, sem se desincumbir (a modo) do ônus da prova que lhe incumbe.
Passamos a expor a solução sistemática – não entrevista, ao que nos conste, por nenhum autor de processo e não abordada na Exposição de Motivos.
Cabem Embargos Declaratórios, no sistema do CPC de 2015, de qualquer decisão judicial (artigo 1.022), para suprir omissão (parágrafo único), assim a consistente em violação do artigo 489, §1º, sobretudo de seu inciso IV: para efeito de se poder considerar fundamentado o provimento jurisdicional, seja sentença, seja decisão interlocutória, o julgador tem de enfrentar todos os argumentos hábeis a infirmar-lhe a conclusão adotada – sendo que a decisão não fundamentada é irremissivelmente nula (artigo 11).
Cuide-se, embora, de nulidade, não será ela sempre absoluta e, portanto, a regra de impreclusão, do artigo 1.009, do CPC de 2015, convive com a do artigo 278 e seu §único, aí onde a distinção entre as nulidades cognoscíveis de ofício (as do parágrafo único, referido) e as dependentes de provocação do interessado, pena de preclusão (as referidas no caput). E releva, portanto, a forma de arguição de nulidade, para a devolutividade como preliminar de apelação, à maneira do (extinto) agravo retido. Mas não só. A nulidade, se absoluta, erige a omissão de fundamentação, a teor do disposto no artigo 489, §1º, IV, do CPC de 2015, em pressuposto negativo de eficácia de julgado (sentença, decisão), dado que deve ser interpretado a partir da conjugação de todos os seus elementos (§3º, do artigo 489), como tais o relatório, os fundamentos (estes, sob atendimento ao §1º, pena de ineficácia) e o dispositivo (incisos I, II e III, do artigo 489).
Só a insurgência da parte, todavia, quanto à omissão de fundamentos da sentença ou decisão, torna o provimento judicial ineficaz: e note-se, os Embargos de Declaração são o recurso para suprir omissões do julgado. Aliás, no sistema recursal do CPC de 2015, há nova destinação dos Embargos Declaratórios — que corrigem a sentença ou decisão omissa de fundamentação, função que não lhes oferecia o CPC de 1973 (em cujo regime a nulidade seria apenas objeto de apelação, com o efeito de cassação).
A recorribilidade das interlocutórias — relevante é constatá-lo — se dá, também (e antes) mediante Embargos Declaratórios. O artigo 299, do CPC de 2015, vem a exame. E não se exaure no caput a norma respectiva. O parágrafo 1º merece transcrição: na ação de competência originária de tribunal e nos recursos a tutela provisória será requerida ao órgão jurisdicional competente para apreciar o mérito.
Ora, a Tutela Provisória abriga a possibilidade de liminar. O parágrafo 1º, do artigo 299, do CPC de 2015, sanciona a suspensividade excepcional, vale dizer, a tutela antecipada recursal ou efeito ativo. Nos termos do artigo 294 e seu parágrafo único, há a tutela provisória de urgência cautelar. Ademais, segundo o artigo 299, será requerida ao juízo da causa e, segundo o artigo 298, ao decidir, concedendo ou negando a tutela provisória, o juiz motivará seu convencimento de modo claro e preciso.
Tollitur quaestio: a decisão de tutela provisória enseja Agravo de Instrumento, ex vi do disposto no inciso I, do artigo 1.015, do CPC de 2015 – como regra que oferece objeto à previsão do artigo 995, § único, do próprio Código.
Se não acolhidos os Embargos Declaratórios (por omissão de fundamentação acerca do efeito processual infligido) advirá, necessariamente, o exame pelo Relator no Tribunal, da liminar atinente à tutela provisória negada em primeiro grau. Relembre-se a regra do inciso I, do artigo 1.019, da possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ou antecipação de tutela recursal, comunicada ao juízo de primeiro grau, a decisão.
Estamos em que, além da hipótese de os Embargos Declaratórios forrarem de preclusão o litigante, poderão regularmente servir a outra indispensável finalidade, a revelar a integridade e coerência do sistema do CPC de 2015 — que definitivamente baniu os sucedâneos recursais: os Embargos Declaratórios abrem a causa à recorribilidade em separado ou autônoma, para efeito de tutelas provisórias.
Assinale-se o efeito recursal injuntivo-inclusivo, próprio dos Embargos Declaratórios, quando fundados na omissão a que se refere o parágrafo 1º (com seus incisos, sobretudo o IV) do artigo 489, do CPC de 2015. De tal efeito cuida o artigo 1.025, do novo CPC: tal artigo se refere ao suprimento automático do prequestionamento, dando por incluída a questão, para efeito de recurso às instâncias extraordinárias.
Ora, a exaustão das vias ordinárias é inerente ao prequestionamento e é o que decorre do ônus de oposição de Embargos Declaratórios de injunção à abertura da recorribilidade em separado, via Agravo de Instrumento. Não se exaure, portanto, a recorribilidade ordinária – no tocante às hipóteses não abrigadas no rol do artigo 1.015, do CPC de 2015 – na Apelação com preliminar de reiteração de recurso subordinado (que o seria a arguição de nulidade, via embargos declaratórios fora dos casos de tutela provisória).
Devo lembrar a análise de Lopes da Costa (ob. cit., pp. 225 e ss), que, se bem não ofereceu solução, indicou-lhe as premissas – aproveitadas no sistema recursal do CPC vigente:
Se o prejuízo que o despacho [hoje, dir-se-ia decisão] pode causar é possível, mas não certo, de modo que a sua existência somente se possa apreciar depois da sentença final de mérito, é racional que se unam os dois recursos: o do despacho interlocutório e o da sentença final, ficando aquele a este subordinado.
Se, porém, o despacho [decisão] necessariamente influi sobre a decisão, sendo assim não mais possível, mas certo o prejuízo, dele o recurso deve ser autonômo, imediato.
Por fim, mas não em último lugar, não se estranhe que a Exposição de Motivos não se refira a tal interação do sistema recursal — na distinção entre prejuízo certo e prejuízo possível, para o primeiro justificada a tutela provisória (que pode ser ampla e, no exemplo citado ao início, do indeferimento de perícia, inarredável dada a etiologia do fato probando, tutela provisória de urgência cautelar). A lei, uma vez iniciada a respectiva vigência, pode superar as intenções e até mesmo as antevisões de técnica legislativa, posto o pleno contato com a realidade fenomênica em que tenha de inserir-se e aplicar-se o texto normativo.
José Marcos Rodrigues Vieira é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e professor titular de Direito Processual Civil da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Fonte- http://www.conjur.com.br/2016-jul-21/pratica-artigo-1015-cpc-ir-alem-vontade-legislativa