Em nosso sistema processual, mesmo após a vigência do novo Código de Processo Civil, a despeito da inexistência de regra específica, a ação rescisória de acórdão, como demanda autônoma de impugnação, é de competência originária do tribunal que proferiu o julgado rescindendo.
Barbosa Moreira, com muita acuidade, escrevendo sob a égide do diploma revogado, afirmava que: “Do texto de vários dispositivos do capítulo Do processo nos tribunais, do Código de Processo Civil, dessume-se que o legislador concebeu como competente para ação rescisória, sempre, um tribunal, entendida aqui esta palavra no sentido de órgão colegiado, a que normalmente cabe o exercício da função jurisdicional em grau superior” (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, 15ª ed., Rio de Janeiro, Gen-Forense, 2009, p. 201).
Tal compreensão a respeito dessa questão decorre inclusive de posicionamento jurisprudencial convergente, já sedimentado no Superior Tribunal de Justiça.
Todavia, verifica-se certa imprecisão na prática, visto que, em algumas circunstâncias, o diagnóstico do conteúdo do julgado não é feito com a necessária atenção, implicando o ajuizamento equivocado da ação rescisória, perante tribunal incompetente.
Isso tem ocorrido, geralmente, quando o acórdão de mérito foi proferido pelo tribunal de origem e o litigante derrotado interpõe recurso especial dirigido ao Superior Tribunal de Justiça. Inadmitido este, maneja agravo regimental contra a respectiva decisão monocrática, que é julgado por órgão colegiado, produzindo um acórdão naquela instância superior. Desavisada, a parte interessada, cometendo flagrante atecnia, afora a ação rescisória perante o Superior Tribunal de Justiça, o qual não julgou mérito algum.
O mesmo se observa, em sentido contrário, ou seja, a rescisória é ajuizada no tribunal de origem, quando, na verdade, deveria atacar o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que examinou o mérito da causa e, portanto, competente para julgar a rescisória.
Com efeito, extrai-se de entendimento manifestado pela 2ª Sessão do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Ação Rescisória 2.821-SP, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, textual: “A ação rescisória não merece prosperar. O pedido formulado pelo autor diz respeito a julgado do (extinto) 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. No entanto, por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Especial 162.209-SP, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão de relatoria do ministro Antônio de Pádua Ribeiro, não obstante ter mantido o entendimento do acórdão estadual, apreciou o mérito da controvérsia, reconhecendo a incidência da prescrição. Assim, a questão de mérito a ser impugnada por meio de ação rescisória encontra-se na decisão proferida por esta Corte e não no acórdão estadual. Na verdade, a presente ação não deveria ter sido ajuizada na Corte de origem, mas sim perante o Superior Tribunal de Justiça, por ter sido o último Tribunal a emitir pronunciamento de mérito a respeito da controvérsia…”.
Igualmente, em situação em tudo análoga, a 2ª Seção, no julgamento do Recurso Especial 718.502-PR, figurando como relator para o acórdão o ministro João Otávio de Noronha, decidiu que: “Proposta a ação rescisória perante o Tribunal de 2º grau na hipótese em que a competência originária para apreciação da respectiva ação é deste Superior Tribunal de Justiça, não é lícito à Corte local determinar a remessa do feito ao Superior Tribunal de Justiça; ao contrário, deve extingui-lo sem apreciação do mérito, com base no art. 267, IV[1973], do CPC”.
Secundando esse mesmo raciocínio, a contrario sensu, acórdão da 3ª Seção, da lavra da ministra Maria Thereza de Assis Moura, no julgamento da Ação Rescisória 3.851-MG, deixou assentado na respectiva ementa que: “1. Se a matéria tratada na ação rescisória não foi objeto de exame pela decisão rescindenda, da lavra de Ministro desta Corte, mas apenas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, incide no caso o disposto na Súmula 515 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual ‘a competência para a ação rescisória não é do Supremo Tribunal Federal, quando a questão federal, apreciada no recurso extraordinário ou no agravo de instrumento, seja diversa da que foi suscitada no pedido rescisório’. 2. Inviável a remessa dos autos à Corte Regional, na medida em que houve erro no ajuizamento em razão da matéria, pois a inicial se insurge contra julgado equivocado, hipótese distinta daquela em que há mero erro na indicação do juízo competente. 3. Processo extinto sem resolução de mérito”.
Definitivamente, dúvida não pode haver de que, se o Superior Tribunal de Justiça, de um modo ou de outro, enfrenta o mérito da controvérsia no julgamento de agravo ou, em particular, de recurso especial, é de sua exclusiva competência funcional, portanto, absoluta, o conhecimento e o julgamento de ação rescisória visando à desconstituição do aresto que proferiu em tais situações.
Assim, omisso, nesse particular, o Código de Processo Civil revogado, se houvesse erro no direcionamento da ação rescisória, a orientação pretoriana que então prevalecia, como acima frisado, posicionava-se no sentido de indeferir, de ofício ou acolhendo arguição de incompetência absoluta suscitada pelo réu, o processamento da ação rescisória, fato que, em muitas circunstâncias, era fatal, porque já ultrapassado o biênio decadencial para o seu reajuizamento perante o tribunal competente.
Caracterizado por ser um diploma que deu significativa ênfase à prevalência do julgamento do mérito, o novo código interveio expressamente para conferir a esta importante questão tratamento mais técnico, racional e justo.
Realmente, dispõe o parágrafo 5º do artigo 968, que: “Reconhecida a incompetência do tribunal para julgar a ação rescisória, o autor será intimado para emendar a petição inicial, a fim de adequar o objeto da ação rescisória, quando a decisão apontada como rescindenda: I – não tiver apreciado o mérito e não se enquadrar no § 2º do art. 966; II – tiver sido substituída por decisão posterior”. Embora não haja previsão expressa, o prazo a ser concedido para emenda da inicial deverá ser de 15 dias, por aplicação analógica do artigo 321 do Código de Processo Civil.
Nesse caso, depois de adaptada a petição inicial, em especial com a alteração do pedido de rescisão do ato decisório correto, abre-se vista ao réu para que este possa exercer o contraditório, aditando, se for o caso, a sua defesa (artigo 968, parágrafo 6º).
Em seguida, os autos serão remetidos ao tribunal que proferiu o julgado rescindendo, então competente para processar e julgar a ação rescisória (artigo 968, parágrafo 6º).
Solução inteligente: preserva e sobrepõe o direito do jurisdicionado ao formalismo que gera indesejado prejuízo!
José Rogério Cruz e Tucci é professor titular e diretor da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
Fonte- http://www.conjur.com.br/2017-ago-15/paradoxo-corte-incompetencia-absoluta-julgamento-rescisoria-cpc