Os atestados falsos, muito usados pelos alcoólatras para esconder ressacas, preocupam especialistas. Dificuldade de reprimir a prática é apontada pelas diversas esferas envolvidas.
Carimbos com dados incorretos são confeccionados sem qualquer exigência de comprovação em gráficas da cidade.
A indústria do falso atestado médico não encontra resistência alguma para continuar existindo. Após mostrar na última segunda-feira como qualquer um pode comprar um documento que legitime a ausência do trabalho — boa parte das vezes motivada pela ressaca —, o Correio revela as facilidades de operação desse esquema criminoso espalhado pelas principais cidades do país.
Para descortinar a destreza dos falsificadores, a reportagem encomendou um carimbo com informações médicas falsas, inclusive detalhando uma especialidade inexistente — “clínica geral”, enquanto o correto seria “clínica médica” —, local de trabalho fictício e número do registro no Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF) não verdadeiro.
O pedido foi feito pessoalmente, no balcão de uma gráfica na Asa Norte. O atendente não solicitou qualquer identificação e, em menos cinco minutos, após o pagamento concluído, dispensou o cliente com a promessa de entrega do carimbo na manhã seguinte. Em outra loja, o funcionário também não exigiu comprovação, garantindo o produto pronto em até dois dias.
O avanço da indústria do atestado falso reacende a discussão em torno do uso de carimbos por médicos. Em tese, só há obrigatoriedade dessa forma de chancela em situações específicas, como nas receitas e em prescrições de determinados medicamentos. Ocorre que eles viraram uma tradição, por serem mais práticos e favorecerem a compreensão dos dados por parte dos pacientes.
O atestado comprado pelo Correio no Conic, no Setor de Diversões Sul, trazia um carimbo e uma assinatura referentes à médica do Hospital de Base do DF Elaine Alves Carneiro. A investigação do caso, em andamento, já descartou a possibilidade de ela ter qualquer relação com o esquema. A residente de 28 anos, assim como muitos colegas de trabalho dela, é vítima do grupo criminoso.
Elaine apresentou aos agentes da 5ª Delegacia de Polícia o carimbo e a assinatura verdadeiros, incompatíveis com os que constam no documento falso. “Espero que as pessoas envolvidas nesse crime sejam identificadas e punidas”, defende a médica, que, além de registrar o boletim de ocorrência depois de ser avisada do fato pela reportagem, acionou o CRM-DF.
O delegado responsável pela investigação, Marco Antônio de Almeida, disse ontem que “mais cedo ou mais tarde” chegará à mulher que se apresenta como Jane e, segundo a própria, vende atestados falsos há nove anos em Brasília, com a ajuda de pessoas com trânsito nos hospitais de Base e do Paranoá. “Essa pessoa será identificada e indiciada”, disse Almeida.
A polícia tentará desvendar como o grupo consegue acesso aos blocos de atestado com o timbre da Secretaria de Saúde do DF. O delegado avalia ser difícil controlar a confecção de carimbos e mesmo de documentos. “Qualquer um, de fato, pode falsificar nesse sentido. A solução é localizar quem pratica essa conduta e aplicar punições severas”, opina.
A Secretaria de Saúde informou que considera a situação “bastante complicada” e reconhece a dificuldade em controlar os sistemas internos. O furto e mesmo a clonagem de carimbos e blocos de atestado são encarados pelo órgão como ocorrências pouco evitáveis. De todo modo, a secretaria voltou a avisar que uma sindicância seria aberta para apurar a denúncia.
Por mês, chegam, em média, 15 casos de atestados falsos ao CRM-DF. O primeiro-secretário do conselho, Luiz Fernando Galvão Salinas, aposta em maior rigidez na fiscalização, até mesmo com a exigência de identificação para confeccionar carimbos. “Mas o problema é difícil. Estamos falando de crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso”, reforça o médico.
Especialista em auditoria interna com 30 anos de experiência, o consultor Marcos Assi sustenta que os hospitais e os próprios médicos podem adotar medidas mais cautelosas para minimizar as chances de se tornarem vítimas das quadrilhas. “O vazamento de bloquinhos, por exemplo, acaba revelando falhas de controle na própria unidade de saúde”, sublinha.
•O que diz a lei
Quem vende atestado ilegal comete crimes, como o de falsidade ideológica, cuja pena pode chegar a 5 anos de reclusão. Os médicos que emitem o documento podem ser enquadrados no delito específico de falsidade de atestado médico, com punição que varia de 1 mês a 1 ano de detenção. Já quem apresenta atestado médico falso no trabalho fica sujeito à demissão por justa causa e também pode ser enquadrado em práticas criminosas. O problema é que, a despeito da legislação, quase nunca alguém flagrado por esses delitos fica preso no Brasil. A impunidade estimula a perpetuação da prática.
Fonte: Correio Braziliense – DF; Clipping Fenacon- 26/1/2015.