Os 10 anos da “nova” Lei de Recuperação Judicial
Ela ainda é chamada de “nova” entre magistrados e advogados. Completados nesta segunda-feira (09/02), os 10 anos da Lei 11.101 – mais conhecida como Lei de Falências e Recuperação Judicial – não foram suficientes para sua completa consolidação, afirmam operadores do direito. Mas a amplitude do seu uso, intensificada nos últimos três anos, torna mais plausível falar de uma década da lei criada no Brasil para reerguer empresas em dificuldade financeira e aumentar a recuperação do crédito.
Entre representantes de devedores e credores não existem muitos consensos. Apenas o de que o novo instituto da recuperação foi um progresso em relação à concordata. “A lei é extremamente eficaz na recuperação de empresas viáveis”, afirma o juiz Luiz Roberto Ayuob, da 1ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, que conduziu a recuperação judicial da Varig, a primeira realizada no Brasil.
“A lei ajudou na recuperação do crédito ao incentivar o diálogo entre credor e devedor e reduzir a interferência do Judiciário”, diz Marcio Calil, coordenador da subcomissão de recuperação de crédito da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
Varig, Parmalat, Centrais Elétricas do Pará (Celpa), Casa & Vídeo, Teka, frigorífico Independência, Mabe e, mais recentemente, as companhias do Grupo X, de Eike Batista, foram algumas das empresas que a utilizaram como socorro em momentos de crise. A lei é a mesma, mas o fim da história foi e será diferente para cada uma delas.
Levantamento recente realizado pela consultoria Corporate Consulting apontou que apenas 1% das empresas que pedem recuperação saem do processo, de fato, recuperadas. “Recuperações judiciais são processos extremamente complexos. Tudo depende de como você define sucesso”, afirma o advogado Thomas Benes Felsberg, sócio do Felsberg Advogados, que representou a Parmalat no processo de recuperação, aprovado pela Justiça em 2006. A empresa tinha 13 mil credores.
Para advogados, uma recuperação bem sucedida não é necessariamente aquela em que a empresa se reergue mantendo os controladores. Felserg cita o caso da Celpa, vendida em 2012 durante a recuperação, pelo valor simbólico de R$ 1 para a Equatorial Energia S/A, empresa do Maranhão. A Equatorial assumiu as dívidas da Celpa. O processo de recuperação foi encerrado em 2014. “Foi bem sucedida. O rating da Celpa tem subido desde então”, afirma.
Uma das grandes vantagens da lei, apontam advogados e juízes, foi a chamada blindagem sucessória, ou seja, a possibilidade de investidores não herdarem passivos fiscais e trabalhistas decorrentes da má gestão. Na prática, a regra tem possibilitado a venda de ativos de empresas em dificuldade pelo preço de mercado, mais competitivo e que atrai mais interessados, elevando o valor do bem. “Nos últimos cinco anos, observamos o crescimento desse novo mercado, o de ativos de empresas em dificuldade”, afirma Flavio Lima, sócio do Mattos Filho Advogados, escritório que coordena as recuperações judiciais do Grupo X.
Polêmico, o parágrafo único do artigo 60 da Lei de Recuperação foi questionado no Supremo Tribunal Federal (STF). Instalou-se, inclusive, uma batalha entre a Justiça do Trabalho e as varas empresariais: a primeira era contra a blindagem e a segunda, a favor. Em 2009, os ministros do STF julgaram constitucional impedir a “herança” dos débitos, como previsto na nova lei. “Antes disso, só os loucos compravam [ativos de empresas em dificuldade] e ofereciam um preço muito baixo, o que não era eficaz”, afirma Ayoub.
A chegada da Lei de Falências foi saudada como uma etapa de modernização do ambiente de negócios do país pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em palestra a investidores em Davos, durante o Fórum Econômico Mundial de 2005. A lei foi assinada por Antonio Palocci, cujo secretário do Tesouro Nacional à época, Joaquim Levy, assumiu o Ministério da Fazenda no mês passado.
No meio do caminho, as pedras
Dificuldade de acesso a crédito e recuperações requeridas por empresas sem viabilidade econômica são alguns dos problemas atuais apontados por devedores e credores.
Em fevereiro de 2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) começou a anular planos de recuperação que continham cláusulas que impunham sacrifício excessivo aos credores, como perdão das dívidas a partir de determinado ano, elevados percentuais de deságio, período elastecido de carência para iniciar o pagamento e falta de previsão de correção monetária para atualizar os débitos.
“Incide-se em grave equívoco quando se afirma, de forma singela e como se fosse um valor absoluto, a soberania da assembleia-geral de credores, pois, como ensinaram Sócrates e Platão, as leis é que são soberanas, não os homens”, afirmou o desembargador Manoel Pereira Calças, no acórdão do caso do Itaú BBA contra a Cerâmica Gyotoku. Decisões semelhantes vieram desde então.
O caso levou o mercado e os operadores do direito a discutirem os limites da soberania da assembleia de credores – prevista na lei – e até que ponto alguns planos deferidos pela Justiça eram, de fato, viáveis. “Já vi planos que previam a venda de todas as unidades produtivas da empresa. O pagamento aos credores será feito como?”, afirma Calil, que também preside a Comissão de Estudos sobre Instituições Financeiras da OAB-SP. “A lei poderia regular melhor o que pode ser alienado e prever a necessidade de justificativa para as vendas”, diz, acrescentando que os credores deveriam ter a oportunidade de apresentar um plano de recuperação alternativo ao da empresa, o que hoje a legislação não prevê.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o Judiciário deve fazer o controle de legalidade do plano homologado, mas não pode deixar de conceder a recuperação por questões econômico-financeiras do plano aprovado pela maioria dos credores.
Para magistrados e advogados, porém, é fato que planos têm sido apresentados e homologados sem que existam reais condições de reerguimento da empresa. Nos Estados Unidos, já há na doutrina o que se chama de deepening insolvency, que é a obrigação de o administrador pedir a falência da empresa quando a recuperação não é viável. Grosso modo, uma tentativa de retirar uma célula cancerosa antes que ela se alastre para o corpo todo.
O que ocorre no Brasil, afirmam especialistas, é que requerida a recuperação as cobranças de credores são suspensas por 180 dias, o que dá margem para empresas sem chances de se recuperar dilapidarem o patrimônio e fraudarem a lei. “Tenho um caso desse agora no gabinete”, afirma Ayoub.
O magistrado afirma que voltou a nomear peritos que fazem uma análise do fluxo de caixa e projeções da empresa para, então, processar o pedido de recuperação. “A maioria dos juízes, porém, se satisfaz com a apresentação formal pela empresa dos documentos previstos no artigo 51”, completa, referindo-se a balanços patrimoniais, demonstrações contábeis, dentre outros.
Em crise, sem crédito
Para as empresas, uma das dificuldades para sobreviver após um pedido de recuperação é o acesso ao crédito. O Conselho Monetário Nacional (CMN) concede às recuperandas rating G ou H, os piores do mercado, o que exige dos bancos o provisionamento integral do valor emprestado. No fim, o crédito é encarecido ou até mesmo inviabilizado. “Empresas em recuperação, às vezes, são tratadas como falidas. Ainda nos falta a cultura da recuperação”, afirma Ayoub.
Para advogados de empresas recuperandas, há um erro de interpretação. “No Brasil, recuperação judicial não é considerada como uma novação, uma renegociação da dívida”, afirma o advogado João Roberto Ferreira Franco, do escritório Lodovico Advogados. “Natural o rating baixar quando há o pedido de recuperação. Mas, após a aprovação do plano pelos credores, o passivo é totalmente reestruturado”, afirma o advogado Julio Mandel, do escritório Mandel Advocacia.
Outro obstáculo, de acordo com Franco, é o fato de os benefícios da recuperação não serem estendidos aos avalistas. “O empresário quando vai ao banco é obrigado a assinar o contrato como avalista. O problema é que a recuperação não protege a pessoa física”, afirma, acrescentando que, nesse cenário, recuperandas recorrem a factorings, onde os juros praticados são maiores que os de mercado.
Para o advogado Paulo Penalva, sócio do escritório Rosman, Penalva, Souza Leão, Franco Advogados, o problema maior não está no acesso ao crédito. Mas na interpretação dos tribunais de que créditos garantidos por cessão fiduciária (recebíveis) estão fora do processo de recuperação. Na prática, os bancos estão liberados para recuperar os valores emprestados sem se submeterem às assembleias de credores. “Matou a recuperação judicial. Todas as empresas estão com esse problema”, diz o advogado que assumiu a recuperação da Varig, três meses depois de o escritório de Sergio Bermudes ter entrado com o pedido.
Passivos fiscais: um novo imbróglio
“A primeira coisa que a empresa deixa de pagar são os tributos”, afirma Franco. O sistema estava capenga. Nove anos depois de editada a Lei 11.101, o governo não havia aberto um programa de parcelamento de dívidas fiscais específicos para as empresas em recuperação.
Diante da lacuna normativa, a Corte Especial do STJ decidiu, em 2013, que enquanto o Refis não viesse os juízes não precisariam estar em dia com o Fisco para terem homologados os planos de recuperação. Em uma análise conjunta da Lei de Recuperação e Falências e do Código Tributário Nacional (CTN), os ministros concluíram que exigir a certidão de regularidade fiscal sem o Fisco dar como contrapartida um parcelamento de débitos acarretaria em sucessivas quebras de empresas.
O parcelamento veio em novembro, com o artigo 43 da Lei 13.043. O Fisco deu 84 meses para as empresas quitarem as dívidas em percentuais que aumentam a medida do avanço das parcelas: 0,666% da 1ª à 12ª prestação, 1% da 13ª à 24ª e 1,333% da 25ª à 83ª. O restante deve ser pago na última parcela.
De acordo com a norma, o parcelamento poderá ser requerido a partir do pedido da recuperação, e não da aprovação do plano pelos credores. “Vai ter muitas empresas pedindo recuperação para obter o parcelamento”, observa o advogado João Roberto Ferreira Franco.
Entre advogados, paira a dúvida se o STJ revisará sua decisão a partir da abertura do parcelamento, que ainda depende de regulamentação pela Receita Federal e Procuradoria da Fazenda Nacional.
Fato é que o Refis para as recuperandas já gera questionamentos por parte de advogados por obrigar as empresas a renunciar de discussões judiciais, prever um parcelamento curto e único para companhias com situações financeiras distintas. “Será um novo imbróglio e a pergunta que deve ser feita é: seria isonômico dar tratamento igual a questões desiguais?”, provoca uma fonte.
Recuperação Judicial: um negócio para os grandes?
Foram mais de 13 mil pedidos de recuperação desde janeiro de 2006, quando a Boa Vista Serviços começou o levantamento. Em 2012, houve a mudança de patamar no número de requerimentos, que se mantém até hoje. “Nossa hipótese é que o crescimento tardio se deu porque as empresas demoraram a descobrir o mecanismo. Começou a ser mesmo utilizada em 2011, 2012, apesar de termos passado por momentos de atividade econômica ruim nos anos anteriores”, afirma o economista Flávio Calife, da Boa Vista Serviços.
Em 2014, grande parte (70%) dos pedidos de recuperação vieram dos setores de comércio e serviços e de empresas de pequeno porte (88%). “Por causa da complexidade do ponto de vista jurídico e do custo, a recuperação tornou-se um procedimento interessante para empresas mais robustas, que têm bons ativos. Aquela que não tem fica sem alterativa”, afirma Flavio Lima. “No fim das contas, o que vale é o potencial de gerar negócios, apesar da má gestão”, completa.
Com a crise nas empresas de Eike Batista, o mercado brasileiro experimenta atualmente a maior recuperação judicial da América Latina e, por consequência, as dificuldades impostas diante da internacionalização das empresas e a globalização da economia. Como estender os efeitos da recuperação realizada no Brasil para subsidiárias da recuperanda em outros países? Como evitar leilões de bens da recuperanda no exterior?
“Não adianta proteger um pedaço e deixar o outro descoberto. É necessária a integração entre vários os sistemas. A jurisprudência pode ajudar e orientar”, afirma Flavio Lima.
Nos primeiros anos de vigor da lei, esse problema já era enfrentado. A Justiça norte-americana ameaçou executar 20 aviões da Varig a favor de um credor da companhia. Sem as aeronaves, seria impossível retomar as atividades e fazer caixa.
“Até por falta de conhecimento, adotamos um procedimento artesanal”, lembra Ayoub. Uma comitiva envolvida na recuperação foi conversar com o juiz Robert Drain, da Corte de Falência de Nova York. A partir daquele momento, o juiz tomava as decisões à medida que a Justiça brasileira ia tomando as dela.
A lei modelo da Uncitral (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial) já prevê regras de cooperação, mas ainda não foi incorporada à legislação brasileira. “Carecemos de uma lei uniforme, pelo menos no Mercosul”, afirma Ayoub.
Fonte- Valor Econômico- 11/2/2015- http://jota.info/os-10-anos-da-nova-lei-de-recuperacao-judicial