Após ser sancionado e publicado no Diário Oficial da União, em 17 de março, o novo Código de Processo Civil (CPC) tornou realidade o tão aguardado “incidente de desconsideração da personalidade jurídica”. Apesar de já existirem normas que autorizam essa medida de exceção, não havia um rito processual específico para a sua aplicação.
Tal novidade vem para assegurar aos sócios, que não participaram do processo, o direito ao contraditório e à ampla defesa, antes de sofrerem a penhora de seus bens. Evitam-se, com isso, as distorções do modelo atual, em que o sócio – apesar de ter a responsabilidade limitada ao valor das quotas ou ações integralizadas – é surpreendido por ordem judicial de bloqueio de bens, já em fase de execução de sentença, para satisfazer credor da sociedade, sem sequer conhecer a causa e, mais, sem poder exercer previamente o seu direito de defesa.
Importante entender, antes de mais nada, que o instituto da limitação de responsabilidade visa proteger o empreendedorismo e incentivar o investimento na atividade produtiva. A função da limitação é de incentivo ao financiamento da atividade empresarial, que se dá por meio da transferência de parte do patrimônio do sócio ou investidor para um determinado empreendimento, correndo todos os riscos a ele inerentes, mas tendo a certeza de que a sua perda estará limitada ao montante integralizado (ao valor das quotas ou ações integralizadas).
O novo CPC coaduna-se com a atual posição do STJ que exige a comprovação de desvio de finalidade da empresa
Ao contrário, defender a responsabilidade ilimitada dos sócios, como regra geral, é colocar em xeque o mecanismo histórico de incentivo ao empreendedorismo e ao investimento privado na atividade econômica, deslocando-os para países que assegurem essa proteção (é o caso das “startups” brasileiras de tecnologia que podem se mudar para a Califórnia em busca da segurança da limitação de responsabilidade e da certeza da aplicação excepcional das hipóteses de desconsideração).
A limitação de responsabilidade deve ser a regra, não o contrário. A exceção é a desconsideração da personalidade jurídica, que somente deve ocorrer se ficar evidenciado um dos requisitos que a autorizam (i.e., desvio de finalidade, confusão patrimonial ou fraude). É fundamental, portanto, que haja um procedimento para apurar os fatos e coletar as provas necessárias à comprovação da existência de um dos requisitos caracterizadores da desconsideração da personalidade jurídica.
Voltando ao texto legal, o novo CPC supre a lacuna procedimental e privilegia o contraditório e a ampla defesa, admitindo a instauração do procedimento específico e incidental para apurar os fatos e verificar se estão presentes os requisitos que caracterizam e autorizam a desconsideração em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e, também, na execução de título executivo extrajudicial. Nessa linha, o novo CPC (artigo 135) prevê a necessária citação daquele que não era parte na ação, permitindo que, no prazo comum de 15 dias, defenda-se do pedido de desconsideração.
Espera-se que o novo incidente processual possa acabar de vez com a aplicação da chamada “teoria menor” – que defende a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica sempre que houver qualquer prejuízo ao credor, prescindindo de prova de confusão patrimonial, abuso de direito ou fraude. Levado ao extremo esse raciocínio menor, um acionista minoritário da Petrobras (qualquer cidadão brasileiro que resolveu investir seu FGTS nas ações da companhia) poderia ter todo o seu patrimônio bloqueado para satisfazer as dívidas da empresa com seus credores, do dia para a noite, sem qualquer direito de defesa.
O novo CPC coaduna-se com o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que exige a comprovação de desvio de finalidade da empresa ou confusão patrimonial entre sociedade e sócios para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Noutras palavras, o mero encerramento irregular das atividades empresariais, sem a extinção da sociedade na Junta Comercial, ou o não pagamento de dívidas, em razão do insucesso do negócio, não são fatos suficientes para autorizar a desconsideração e o redirecionamento da execução contra o patrimônio pessoal dos sócios, privilegiando-se, assim, o instituto da limitação de responsabilidade dos sócios. Até porque, neste último caso, o próprio legislador traz a solução para o problema: pedido de falência da sociedade empresária insolvente.
Assim, com a criação do referido “incidente de desconsideração da personalidade jurídica” e, consequentemente, com a garantia do contraditório e da ampla defesa, acredita-se que o novo CPC possa contribuir para dar o mínimo de segurança jurídica àqueles que já empreendem ou que resolvam empreender no Brasil, gerando empregos, recolhendo tributos e fomentando o desenvolvimento econômico do país.
Fonte: Valor Econômico- 13/4/2015; http://alfonsin.com.br/desconsiderao-da-personalidade-jurdica-2/