Nesses dias de novas ondas de processo civil não há nada mais politicamente incorreto do que falar mal da conciliação e da mediação. Embora flerte com essa possibilidade, não a realizarei, ao menos não plenamente nesse texto.
E isto porque o problema, em si, não está nas técnicas de conciliação e mediação, nem tampouco no estímulo a sua prática.
O Judiciário certamente não tem condições de lidar com a quantidade de demandas que recebe, de modo que estas medidas representam tentativa de ajudar na redução do estoque de causas, ao mesmo tempo em que viabilizam solução mais adequada, flexível e negociada para o conflito.
Péssima, porém, é a solução encontrada pelo novo CPC na tentativa de fomentá-las. O código criou uma audiência obrigatória de conciliação ou mediação, a qual precede no procedimento comum o oferecimento da resposta do réu (contestação ou reconvenção). Vejamos:
Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
Pela regra geral, em todas as causas deve haver audiência ou de conciliação ou de mediação, designada nos termos do caput do artigo 334. E as partes têm o dever jurídico (e não o ônus) de comparecer, ao passo que o não comparecimento será considerado ato atentatório à dignidade da justiça, com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado (CPC, art. 334, § 8º).
O maior problema desta audiência não está no comparecimento das partes nem tampouco na necessidade de enfrentamento das técnicas de conciliação. Nada disso. Está na realidade, quando a lei encontra o Judiciário verdadeiro, o qual, em grandíssima parte, não está nem de perto preparado para realizar estas audiências.
Na prática, sem a organização de órgãos adequados e de profissionais disponíveis, a audiência de conciliação ou mediação ficará a cargo do juiz e, diante da baixa disponibilidade de datas, as audiências deverão ser marcadas “a perder de vista”, demorando meses e em alguns casos até anos para serem realizadas [1].
A ideia que visava melhorar o processo se torna, no mundo real, um entrave à efetividade e à razoável duração do processo, com enormes prejuízos para os litigantes [2]. Daí a pergunta: podemos evitar a audiência de conciliação e mediação?
A hipótese mais claramente prevista pela lei reside na circunstância de a causa se pautar em direito que não “admite composição” (CPC, art. 4º, II). A doutrina muito diverge sobre esta ideia, esclarecendo que até mesmo direitos indisponíveis, principalmente no que tange a suas consequências patrimoniais, admitiriam autocomposição. E nesta medida, mesmo ações que tratam de saúde, educação, patrimônio cultural (direitos difusos), estado das pessoas, poderiam se submeter a esta audiência. Tanto isso é verdade que, especificamente para a causas de família, o próprio Código criou procedimento especial prevendo audiência obrigatória dessa natureza (CPC, art. 695) [3].
A vedação de audiência nas causas que não admitem autocomposição deve ser compreendida, fundamentalmente, para evitar perda de tempo e gasto inútil de recursos, especialmente quando a Fazenda Pública não tem autorização para composições [4].
O princípio da legalidade exige ao advogado público que somente transija nas hipótese em que há autorização expressa em ato normativo. Não havendo, a causa não admitirá autocomposição, sendo viável que – mediante requerimento unilateral ou mesmo de ofício – o juiz determine a citação direta para contestação.
E quanto aos litígios privados, nos quais a admissibilidade de transação é a regra, é possível evitar a audiência? Sim, para tanto é necessário um negócio jurídico processual típico (CPC, art. 4º, I). Deve o autor indicar na petição inicial expressamente sua vontade, do mesmo modo que deve o réu o fazer, mediante petição simples, assim que receber sua citação.
A audiência, em princípio, somente poderá ser evitada com a manifestação expressa de ambas as partes (CPC, art. 4º, I). Não há margem para se afastar, no curso do processo, a referida audiência pela manifestação expressa de apenas uma das partes, mesmo se sabendo que “se um não quer, dois não se conciliam” [5].
Então, fora as hipóteses do inciso II do art. 4º do CPC, a audiência somente será evitada se ambas as partes manifestarem expressamente sua vontade em não conciliarem, sempre por escrito? Sim, de fato. No entanto, esta previsão legal específica – quanto a este negócio jurídico dentro do processo – não afeta o poder geral de negociação das partes, sobre normas processuais, fora do processo.
O artigo 190 do CPC e o poder geral de negociação a ele inerente, inclusive antes de o processo surgir, autoriza que as partes estipulem livremente, em negócios jurídicos civis, como contratos e declarações unilaterais de vontade, a modificação peculiar do procedimento comum, evitando-se a realização de audiência de conciliação e mediação. Trata-se da alteração do modo de ser do processo, tal como expressamente autorizada pela lei.
Estipular, portanto, cláusula processual preventiva, no sentido de que, surgindo entre as partes litígio, estas desde logo manifestem o interesse de não realizarem audiência de conciliação e mediação pode ser medida apta a aumentar significativamente a efetividade de processo futuro. Obviamente, sem prejuízo das técnicas de conciliação e mediação serem utilizadas antes de o processo nascer. Como deve ser! [6]
Na verdade, e prosseguindo mais na linha de raciocínio, mesmo nos casos em que não há tal previsão em contrato, é possível a vontade inequívoca das partes em não se submeterem à conciliação ou mediação.
Muitos ordenamentos jurídicos trabalham com a ideia de a “carta à demanda”, um pré-requisito para o processo judicial. Não poderia a parte interessada em demandar, antes disso, encaminhar à parte adversária carta chamando-a à conciliação ou mediação, antes do processo? Nesse caso, não seria razoável que, na negativa expressa à proposta de conciliação, ter se formado ali um verdadeiro negócio processual (pré-processual, cf. CPC, art. 190), apto a justificar a modificação do procedimento comum e evitar a famigerada audiência? Pensamos que sim. E vamos além.
A necessidade de manifestação expressa da vontade é exigida quando esta se dá depois de o processo existir, pelo autor na inicial e pelo réu por petição simples (CPC, art. 4º, I). No entanto, a norma restritiva de direitos (limites à manifestação de vontade), deve ser interpretada restritivamente, de modo que a exigência de manifestação expressa de vontade não se aplica aos demais negócios, formulados antes de o processo nascer.
Isto porque, conforme já nos manifestamos, aos negócios jurídicos processuais se aplicam subsidiariamente as regras do direito civil, dentre as quais o art. 111 do Código Civil, pelo qual “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa” [7]. No caso, a inércia da parte em sequer responder à tentativa de conciliação ou mediação prévia, mesmo diante de alerta específico, no contexto social em que inseridas as medidas pré-processuais (CC, art. 422), permite-nos inferir a ausência de pré-disposição daquele sujeito em se submeter às referidas técnicas. É sim vontade clara em não conciliar! [8]
Com base neste fundamento, a parte que almejar se valer do Judiciário, pode, antes disso, encaminhar correspondência ao adversário, convocando-o para conciliar ou mediar e, ao mesmo tempo, encaminhando proposta inequívoca de negócio processual, mediante o seguinte alerta “na hipótese de silêncio, este deverá ser interpretado com a anuência a proposta de negócio jurídico processual para evitar a audiência de conciliação ou mediação, com base no art. 190 e 334 do CPC”.
O alerta está de acordo com a ideia de cooperação e boa fé (CPC, arts. 5º e 6º e CC, art 422), a transação processual antes do processo tem base expressa na lei (CPC, art. 190), a qual admite negócios tácitos (CC, art. 111) e, por fim, a regra processual que exige vontade expressa não se aplica aos negócios realizados antes do processo, mas somente àquele específico do inciso II do § 4º do art. 334 do CPC. Norma que restringe a vontade deve ser interpretada restritivamente.
A audiência de conciliação e mediação, criada com boas intenções, é no mundo real um entrave à efetividade do processo. Temos de identificar os mecanismos adequados para evitá-la, pensando para além do Código de Processo Civil.
Nossa preocupação, no entanto, é permitir que esta interpretação tenha coerência com o sistema, e não represente uma vontade do intérprete em fazer o código ser o que, na verdade, ele não é!
[1] Não acreditamos seja adequada a solução de delegar ao juiz o dever de realizar audiência de conciliação ou mediação. Além de a formação do magistrado não englobar, como regra, os conhecimento necessários para tanto, a figura imponente do juiz impede a liberdade de exposição de ideias necessárias e constrange as partes – ainda que implicitamente – com a possibilidade de prejulgamento. Seguindo essa linha, já se tem notícia de muitos magistrados que simplesmente deixam de marcar a referida audiência, ao argumento de o Judiciário não estar preparado.
[2] Exatamente por este motivo, Fernando da Fonseca Gajardoni defende a possibilidade de flexibilização do procedimento pelo juiz, de modo a suprimir referida audiência: “a parte poderia requerer ao magistrado, com arrimo nos já citados deveres, que flexibilizasse o rito processual e dispensasse o ato, nos casos em que a realização da audiência pudesse comprometer a celeridade do processo ou comprometer a sua efetividade. Diversas razões podem inspirar tal pedido, tal como a demonstração de prévia e frustrada tentativa de conciliação (trocas de email), o comportamento refratário à autocomposição do adverso, em causas pretéritas semelhantes, etc. Evidentemente, o ônus argumentativo em prol da dispensa do ato seria todo da parte. O juiz faria, então, um juízo de valor sobre a justificativa apresentada unilateralmente por autor ou réu e, em verdadeira atividade de case management, dispensaria o ato, determinando a citação do réu diretamente para resposta, ou o início do curso deste prazo nos casos de ele já ter sido citado para a audiência da qual declinou” (Comentários ao CPC de 2015, vol. 2, 2016).
[3] A Lei 13.140/2015, em seu artigo 2º, § 3º, tem redação distinta: “Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação”. E no artigo 3º, § 2º, complementa esta ideia, ao prescrever “O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público”.
[4] Tratando da Lei 13.140/2015, Mariana Saragoça comenta que “Com relação aos conflitos envolvendo a administração pública federal direta, suas autarquias e fundações, a referida lei prevê a possibilidade de tais controvérsias serem objeto de transação por adesão, mediante autorização do Advogado‐Geral da União ou de parecer do Advogado‐ Geral da União, aprovado pelo Presidente da República. Nesses casos, a resolução administrativa terá efeitos gerais e será aplicada aos casos idênticos que tiverem sido habilitados mediante pedido de adesão, tendo como efeito a renúncia do interessado ao direito sobre o qual se fundamenta a ação ou o recurso, eventualmente pendentes, de natureza administrativa ou judicial”. http://jota.uol.com.br/a-nova-lei-sobre-a-autocomposicao-de-conflitos-na-administracao-publica
[5] A este respeito, afirmou Gajardoni: “O Novo CPC não é o que queremos que ele seja”. http://jota.uol.com.br/o-novo-cpc-nao-e-o-que-queremos-que-ele-seja
[6] Nesse sentido, a regulamentação da mediação e conciliação extrajudicial pela Lei 13140/2015, inclusive com a previsão da autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público (art. 32).
[7] Nesse sentido, defendemos que “Os negócios jurídicos processuais se submetem aos requisitos gerais de existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos. E isto porque, antes de se referirem ao processo, são negócios jurídicos, produto da manifestação de vontade das partes e pautados no princípio da livre estipulação contratual (CC, art. 421). (“Comentários ao art. 190”, Código de Processo Civil Anotado. Coord. José Rogerio Cruz e Tucci et al. AASP e OAB/PR, 2016, pp. 336-337).
[8] A respeito do valor do silêncio nos negócios jurídicos, cf. Caio Mario da Silva Pereira, Instituições de direito civil. Introdução do direito civil e teoria geral do direito civil. Vol. I. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp. 413-414.
11/4/2016
Fonte- http://jota.uol.com.br/como-escapar-da-audiencia-de-conciliacao-ou-mediacao-novo-cpc