Quase 11 anos após a publicação da Lei nº 11.101, de 2005, muito ainda se discute acerca da necessidade de apresentação, pelo devedor, da certidão de regularidade fiscal no processo de recuperação judicial. Isso porque a Lei nº 13.043, de 2014, que instituiu o parcelamento especial para tais devedores, muito embora possua vantagens em relação ao parcelamento ordinário (como o prazo com 14 meses mais extenso, a liberação de apresentar garantia do valor do débito inscrito na dívida ativa e a abrangência de débitos sujeitos à retenção na fonte), na prática, revela-se ineficaz para a maior parte dos devedores, considerando o prazo concedido para pagamento, além da obrigação de quitação integral, sem redução de multa e juros.
Causam estranheza tais condições, sobretudo se comparadas àquelas instituídas por programas de refinanciamento de dívidas fiscais, como o da Lei nº 11.941, de 2009, que permitiu o pagamento dos débitos em até 180 meses, com larga redução de multa e juros. Sob essa lógica, o que parece revelar o parcelamento da Lei nº 13.043 é o interesse exclusivo de arrecadação do Estado, em detrimento da preservação da empresa como fonte produtora e, por conseguinte, do seu soerguimento.
Em que pese o crédito tributário não estar sujeito à recuperação judicial, sem equacionamento do passivo tributário, dificilmente o devedor consegue manter a integridade do plano. Não por acaso, a maior parte dos processos de recuperação judicial é convertida em falência. No processo de recuperação, o maior desafio dos administradores e advogados reside em tornar viável a recuperação da saúde financeira das empresas e a regularização de seu passivo tributário, para que se lhes oportunize a continuação de suas atividades.
É indiscutível a relevância de se permitir a adesão a parcelamento especial e efetivo, o que não ocorre com a Lei 13.043
A discussão promove variados reflexos em toda a ordem econômica, pois o princípio subjacente ao artigo 47, da Lei nº 11.101, de soerguimento e manutenção da fonte produtora, dos empregos e do equacionamento dos interesses dos credores, está intimamente associado ao princípio da livre iniciativa e seu consectário da livre concorrência, em garantia do qual o legislador constituinte, no artigo 174, dispôs que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à eliminação da concorrência.
Com efeito, a legislação brasileira, no tocante à recuperação judicial, foi inspirada no modelo norte-americano “chapter eleven”, em cuja concepção prevalece a teoria da superação do dualismo pendular, em as partes envolvidas devem suportar ônus em prol da manutenção da fonte produtora, o que consubstancia a finalidade da norma, desde que tenha viabilidade econômica.
Incoerentemente, tem-se notado uma banalização do argumento de que obrigação de apresentar a certidão de regularidade fiscal inviabiliza o cumprimento do plano, com o que se pretende conferir a esse argumento caráter exclusivo de direito, conquanto, na realidade, contemple conteúdo eminentemente fático-probatório. Indaga-se, nesse contexto, se o argumento não deveria ser provado, ao invés de meramente alegado e acolhido, pelo Poder Judiciário, como se fosse uma premissa absoluta.
Mesmo porque, se existe previsão legal quanto à apresentação de certidão como condição para a concessão da recuperação judicial (artigo 57), não poderia o Judiciário, em tese, a pretexto de que tal previsão impossibilitaria outra, contida na mesma lei (artigo 47), negar-lhe vigência. Para tanto, seria necessário o reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo, resguardada a reserva de plenário, na forma do artigo 97 da CRFB/1988, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no REsp nº 1.279.525.
Importante ressaltar que, se a ausência de lei especial para o devedor, até 2014, ensejou um sem-número de demandas pelos devedores que tiveram a recuperação deferida, para buscar o reconhecimento do direito à obtenção de parcelamentos mais benéficos do que o ordinário, dado à impossibilidade, na prática, do seu cumprimento, é previsível que, em razão da ineficácia da Lei nº 13.043, no plano prático da sua aplicação, a situação de insegurança jurídica e necessidade de se recorrer ao Judiciário continue a ocorrer.
Independentemente da necessidade ou não de apresentação de certidão, no processo de recuperação judicial, é indiscutível a relevância de se permitir a adesão a parcelamento especial e efetivo – o que não ocorre com a Lei nº 13.043 – para pagamento dos seus débitos de natureza tributária, já que representam parcela significativa das dívidas dos devedores em exame. Se não for possível viabilizar o seu adimplemento, mediante condições especiais, inviabiliza-se, por conseguinte, a recuperação da pessoa jurídica.
Ante o exposto, pode-se concluir que a exigência da certidão de regularidade fiscal no âmbito de um processo de recuperação judicial está longe de ser pacífica, o que somente ocorrerá se o Poder Judiciário reconhecer, por órgão fracionário, a inconstitucionalidade dos artigos 57, da Lei nº 11.101, e 191-A do CTN, o que deverá ser analisado pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ação declaratória de constitucionalidade nº 46. A questão pode, por outro lado, ser suavizada se elaborada uma lei de parcelamento especial, que efetivamente atenda às necessidades dos devedores em crise financeira.
Fonte: Valor Econômico- 6/12/2016-