Em vigor há sete dias e tema de exaustivos debates, a Lei Anticorrupção tem preocupado não por sua rigidez, mas pelas brechas que teria. O grande temor de empresários, executivos e advogados é que a norma, cujo objetivo é combater a corrupção, seja usada em alguns casos como um “instrumento de barganha” ou de “intimidação” e tenha efeito contrário ao esperado.
A possibilidade de a empresa responder por ato lesivo à administração pública dentro da nova legislação caso “dificulte a atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos” é um dos exemplos de lacuna citados por advogados. A medida está prevista no inciso V do artigo 5º da norma.
A advogada Isabel Franco, sócia do Koury Lopes Advogados, entende que a lei deixou para o próprio fiscal a interpretação do que seria dificultar uma investigação ou fiscalização. Para ela, a previsão seria vaga e perigosa, pois pode gerar uma reclamação contra uma companhia pela simples interpretação de que ocorreu alguma espécie de impedimento à investigação. “Essa é uma questão subjetiva que não poderia ser colocada na mesma linha que o pagamento de propina, por exemplo”, diz. Com isso, acrescenta, cria-se mais uma possibilidade de intimidação das pessoas jurídicas.
Além desse aspecto da lei, outro ponto que tem gerado debates acalorados é o fato de a legislação prever que a fiscalização poderá ser efetuada por órgãos federais, estaduais e municipais. A maior preocupação concentra-se nos pequenos municípios e nas pequenas estruturas para realizar investigações. “As grandes empresas não estão mais preocupadas com o fiscal americano, mas com o brasileiro. Não conhecemos a qualidade desse pessoal e ainda qual seria o tipo de comprometimento deles com o poder público”, afirma um advogado que prefere não ser identificado.
De acordo com esse mesmo advogado, abusos poderão ocorrer, principalmente em locais distantes dos grandes centros, onde o agente público agirá de forma solitária. “Para mim, essa norma coloca mais um instrumento de barganha nas mãos dos fiscais”, diz. O temor de um empresário que também não quis se identificar é o assédio que possa sofrer de eventuais prefeituras. “Se for usada de forma incorreta, essa lei pode acabar virando um instrumento de pressão política”, afirma.
O advogado José Ricardo de Bastos Martins, sócio da área societária do Peixoto e Cury Advogados diz que os clientes realmente estão preocupados com a aplicação prática da norma, principalmente na ausência ainda de uma regulamentação que detalhe os procedimentos.
Para o criminalista Renato Vieira, do André Kehdi e Renato Vieira Advogados, em um primeiro momento uma fiscalização ampla por União, Estados e municípios pode soar como algo positivo, mas que poderá no mínimo gerar muita confusão para se definir quem deve fiscalizar determinados atos. Já Isabel Franco diz que essa confusão poderá se refletir nos acordos de leniência, instrumento que pode contribuir para reduzir as penas aplicadas. A preocupação é que, se não se sabe quem vai aplicar a lei, não há como se fazer uma negociação segura.
Sempre que uma lei atribui poder a servidor público, há o risco do uso equivocado desse poder, segundo o advogado Pierpaolo Bottini, do Bottini & Tamasauskas Advogados. Porém, ele pondera que como o Brasil é uma federação, não haveria como suprimir poder dos Estados e municípios. “Seria um contrassenso constitucional, pois a divisão federativa está prevista na Constituição”, diz. Para ele, o combate ao mau uso da lei deverá ser feito pelo Ministério Público. “O importante é que a regulamentação deixe claro quais parâmetros deverão ser usados [para dosimetria da multa e análise de critérios de compliance] por Estados e municípios que aplicarem a lei.”
O promotor de Justiça Cesar Faccioli, responsável pela campanha gaúcha “O que você tem a ver com a corrupção?”, afirma que a lei chega em um momento oportuno para que o Brasil cumpra, com atraso, seu compromisso internacional de combate à corrupção. Chega, diz, com a lógica de se buscar o patrimônio de quem esvazia os cofres públicos. Ele acredita que a norma será responsável por uma transformação nos processos e comportamentos.
Apesar disso, ele entende que há fundamento na preocupação quando se diz que a lei poderá ser usada para fins de intimidação e barganha. Por isso, ele entende que as empresas terão que também que exercer o papel de fiscais e denunciar abusos. “A lei precisa ser aplicada com responsabilidade e capacidade técnica, por isso é necessário exigir capacitação dos fiscais”, afirma.
O promotor de Justiça Arthur Pinto de Lemos Junior, do grupo Especial de Delitos Econômicos do Ministério Público de São Paulo, elogia os objetivos da lei, mas diz que a norma deveria prever a comunicação imediata de qualquer investigação administrativa realizada. Isso não está previsto na norma, que estipula a comunicação apenas ao fim do procedimento. Uma das possíveis consequências seria uma investigação poder atrapalhar a outra. O ideal seria que fossem realizadas em conjunto ou de forma paralela.
De acordo com o professor de ciências sociais da Universidade de São Paulo (USP) Rúrion Melo, o ponto fundamental que determinará se a lei será usada ou não para interesses políticos são as brechas. “Ela poderá dar margem a interesses políticos por meio dessas brechas, por isso as empresas estão preocupadas com esse risco”, afirma. Ele exemplifica que a lei determina responsabilidade solidária e que a pena pode ser atenuada se comprovadas ética e boa conduta, o compliance. “Mas o que é boa conduta? O que é ética?”. “Não tenho dúvida de que isso vai bater no Judiciário.”
Para o economista Marcos Fernandes, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o Estado brasileiro é por natureza autoritário e arbitrário. “Por isso, o risco do uso indevido da lei deve ser levado em consideração”, afirma. Para evitar isso, segundo ele, a regulamentação deve ser muito debatida.
O uso da nova Lei Anticorrupção como instrumento de extorsão para o financiamento de campanha também é cogitado. “Ou abre-se um processo administrativo e, mesmo que a empresa tenha direito de se defender, terá que passar pelo Judiciário, onde um processo pode levar até dez anos para ser encerrado”, afirma Fernandes.
O economista atualizou para o Valor seu estudo sobre o impacto da corrupção nas políticas públicas. Com base no montante de R$ 40 bilhões desviados, por má gestão ou má-fé, no período de 2002 a 2012, segundo dados da Controladoria-Geral da União, em relação aos recursos do governo federal, ele conclui que se cada real desviado tivesse sido investido em saneamento básico e casas populares, a população teria três meses a mais de expectativa de vida e 200 mil domicílios a mais, que beneficiariam quase um milhão de pessoas.
Fonte : Valor Econômico; Clipping da Febrac- 5/2/2014.