O temor é, em geral, do comprador (de imóveis, participações societárias etc), que pode ter seu contrato anulado (fraude contra credores) ou declarado ineficaz (fraude à execução). Apesar de a auditoria ser trabalho recorrente no Brasil, ainda há dúvidas sobre sua correta abrangência temporal. Há nesse tema um conflito entre uma velha cultura e a lei.
Na vigência do Código Civil de 1916, houve debates sobre a natureza jurídica do prazo de alegação de fraude contra credores. A lei falava de prescrição em quatro anos. Disso decorreu uma prática inusitada dos advogados de, frente a um prazo prescricional, analisar os 20 anos anteriores ao negócio e, então, cobrir o maior lapso temporal do antigo código para a prescrição.
Todavia, os tribunais não demoraram a fixar como decadencial o prazo da fraude contra credores, por envolver anulação de negócio jurídico. O entendimento foi consagrado no Código Civil de 2002, que estabeleceu quatro anos. Porém, a cultura da “auditoria vintenária”, ao invés de acabar, migrou para a “decenal”, já que a lei civil vigente reduziu o maior prazo prescricional de vinte para dez anos. Essa confusão entre prescrição e decadência piorou quando entrou em cena a fraude à execução, que trata de ineficácia e, portanto, não prescreve nem decai.
Não há base legal para, em relação às fraudes, a auditoria abranger período superior a quatro anos anteriores ao negócio em análise
Enquanto fraude contra credores opera-se por ação judicial específica, a fraude à execução é remédio processual destinado a assegurar a tutela jurisdicional. Seu objetivo é impedir que o devedor dilapide patrimônio enquanto for réu em certo processo. Por tornar as alienações ineficazes, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais, o que torna ainda mais absurda a cultura da “auditoria decenal” referida acima. Na fraude à execução, analisar dez anos é o mesmo que analisar cem anos ou um dia: a alienação continuará ineficaz para aquele que adquiriu em contexto fraudulento. Desse modo, em uma aquisição imobiliária, por exemplo, a auditoria de antecessores do vendedor não agrega segurança face à fraude à execução. O que importa é a relação do adquirente com quem está lhe vendendo.
O tema fica mais claro quando se observa que anulabilidade ou ineficácia atingem somente aqueles que estabeleceram relação jurídica com o devedor ou hajam procedido de má-fé. Ou seja, a figura central para a configuração das fraudes é sempre quem tem dívidas. Assim, em uma cadeia de transações, quem não estabeleceu vínculos com o devedor não terá, em regra, seu negócio anulado ou declarado ineficaz.
A é devedor insolvente de B e negocia um bem com o primeiro adquirente C. Se este, não estando em insolvência, negocia o bem com o segundo adquirente D, o credor B não conseguirá alcançar a segunda venda por fraude contra credores ou fraude à execução, a não ser que prove o envolvimento de D na operação fraudulenta. Se o segundo adquirente D estiver de boa-fé, ficará imunizado contra os efeitos das fraudes do devedor A porque simplesmente não se relacionou com este.
Alguns dirão, porém, que a fraude à execução tem alcance “ad eternum”. Esse raciocínio merece um ajuste. A ineficácia será eterna apenas para a pessoa que fraudou junto com o insolvente: no exemplo acima, o primeiro adquirente C, cuja aquisição poderá ser declarada ineficaz a qualquer tempo. É o que dispõe o artigo 593, II, do CPC, pelo qual a fraude à execução opera-se quando, ao tempo da alienação, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência. Se o primeiro adquirente C, não tendo sido envolvido em processo sobre o negócio firmado com o devedor A, vende para D, tal venda nunca será ineficaz, a não ser que se prove a má-fé de D.
Então qual deve ser a referência temporal de análise da auditoria? Quatro anos. Se o contrato entre o primeiro adquirente C e o segundo adquirente D data de mais de um quadriênio do negócio entre C e o devedor A, D estará livre da fraude contra credores por disposição do artigo 178, II, do Código Civil, e terá uma forte defesa contra a fraude à execução no artigo 335 do CPC, pelo qual o juiz deve julgar conforme as máximas da experiência.
Se, em quatro anos, o credor B não direcionou nenhuma demanda ao primeiro adquirente C a fim de afastar a boa-fé do segundo adquirente D, este deverá ser protegido, pois não é razoável supor que alguém (no caso D) participaria de uma fraude (com A e com C) para concretizá-la somente quatro anos depois. O credor B, por força da súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça, teria o ônus de provar a má-fé de D e, por ter demorado tanto para processar C, estaria fragilizado sob a lógica do dormientibus non succurrit jus (o Direito não protege quem dorme).
Em resumo, não existe base legal para, em relação às fraudes, a auditoria abranger período superior a quatro anos anteriores ao negócio em análise. Esse prazo consolida a decadência na fraude contra credores e materializa a boa-fé do adquirente perante a fraude à execução, dadas as regras da experiência comum sobre a duração das operações fraudulentas e a posição sumulada do STJ que aloca o ônus da prova da má-fé sobre o credor prejudicado.
Kleber Luiz Zanchim é doutor pela Faculdade de Direito da USP e sócio de SABZ Advogados
Fonte- Valor Econômico- 17/9/2014- http://alfonsin.com.br/auditoria-fraude-contra-credores-e-execuo/