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A superação do precedente no novo CPC

A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil, trouxe modificações de impacto não só no funcionamento da máquina judiciária, mas também na metodologia de trabalho dos magistrados, independentemente das melhorias que ainda precisam ser implantadas para dar mais eficiência administrativa ao Poder Judiciário.

Exemplo de novidade processual é a regra que impõe a todo juiz, do primeiro ao último grau de jurisdição, o dever de apontar os fundamentos determinantes do precedente ou súmula invocada em sua decisão para justificar sua aplicação no caso concreto, e de expor o motivo pelo qual sua decisão não adotou o entendimento previsto em súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, para demonstrar em que ponto um caso se distingue do outro, ou mostrar que o entendimento se encontra superado no panorama jurisprudencial.

Nesse aspecto, o novo CPC também se dirige aos tribunais de cúpula, de forma até mais contundente, para determinar que sua jurisprudência seja uniforme, estável e coerente. Para alterá-la, o tribunal poderá convocar audiências públicas com a participação de pessoas, órgãos ou entidades que venham a contribuir para a rediscussão da tese. Poderá também modular no tempo os efeitos do novo precedente, uma espécie de amortecedor de impacto que evita pegar de surpresa quem já se beneficiou com a jurisprudência anterior. Em qualquer caso, a fundamentação deve ser adequada e específica em atenção aos princípios da segurança e da isonomia.

O novo CPC se dirige aos tribunais de cúpula para determinar que sua jurisprudência seja uniforme, estável e coerente

Tais regras, como se sabe, ainda não estão em vigor, mas o sistema atual, apesar do vácuo legislativo, indica parâmetros auxiliares de interpretação, sobretudo se trabalhado na linha do devido processo constitucional. Por exemplo, o procedimento de edição, revisão e cancelamento de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A Lei nº 11.417, de 2006, prevê a convocação de especialistas para opinar sobre a questão, como também a válvula de modulação para imprimir eficácia prospectiva ao precedente inovador, se for o caso.

Entretanto, não foi essa a postura adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em recente julgamento. Tempos atrás, em sessão de abril de 2011, após intensa discussão, a 2ª Seção, por maioria, havia fixado a interpretação oficial do art. 798 do Código Civil, entendendo que o suicídio ocorrido no prazo de dois anos de vigência do contrato de seguro, por si só, não exime a seguradora da obrigação de pagar o capital segurado, a menos que ela prove ter havido premeditação do segurado.

A Corte Superior interpretou o texto legal de forma sistemática, à luz da boa-fé objetiva, e manteve orientação há muito conhecida pelas Súmulas 105 do STF e 61 do STJ, editadas no regime do Código Civil de 1916 (AgRg no Ag. 1.244.022-RS).

Quatro anos depois, todavia, em abril de 2015, a 2ª Seção do STJ voltou a debater esse assunto e, por maioria, vencido o ministro Sanseverino, fixou o entendimento de que o suicídio não constitui risco coberto durante os primeiros dois anos do contrato de seguro de vida. O tribunal passou a entender que o art. 798 do Código Civil adotou o critério objetivo temporal para afastar a dúvida da premeditação. Após o referido prazo, a seguradora será obrigada a indenizar qualquer suicídio (REsp 1.334.005-GO).

Como se vê, a alteração de jurisprudência nesse caso foi radical. Não se discute aqui qual das duas é a melhor interpretação. O fato é que não se teve o cuidado com a forma de reabertura dessa discussão. O recurso foi simplesmente afetado à competência da 2ª Seção e meses depois entrou em pauta.

Não se teve a cautela de convocar especialistas para opinar perante a Corte. Para esse tipo de evento, não basta assegurar o contraditório subjetivo dos litigantes. É preciso estabelecer um contraditório institucional com diálogo e participação de entidades do mercado que representem os segmentos interessados, como seguradoras, resseguradores, corretores, consumidores e o próprio Estado (Susep). No caso, só a Federação Nacional de Previdência Privada e Vida interveio como assistente da seguradora envolvida.

A própria composição da Corte já não era a mesma que apreciou o assunto em 2011. Dos dez ministros que compõem a 2ª Seção, oito estavam presentes no dia do julgamento, dos quais a metade não havia participado do leading case. Entre os quatro novatos, três fizeram rápidas considerações, enquanto outro sequer declarou voto.

E assim foi invertida uma jurisprudência com meio século de vida, sem o diálogo institucional prévio que seria fundamental para reabrir essa controvérsia. O fato é relevante e merece reflexão na esperança de que o novo CPC possa ajudar a desenvolver uma cultura do precedente em nosso país, evitando reviravoltas como essa que a todos surpreendem e atormentam.

Gustavo de Medeiros Melo é advogado do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia (SP), mestre e doutor em direito processual civil (PUC-SP); professor da Escola Superior de Advocacia de São Paulo (ESA-SP), membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP)

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Fonte : Valor Econômico; Clipping da Febrac- 6/8/2015.

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