O novo procedimento do incidente de desconsideração da pessoa jurídica disciplinado pelo Código de Processo Civil (CPC) é um importante avanço na preservação dos direitos fundamentais. Traz maior segurança jurídica para sócios e empresários ao impor observância do contraditório. E evita surpresa à parte, tumulto processual que, não raro, é observado em alguns processos.
Se aplicada com razoabilidade, garantindo o devido processo legal, a técnica pode evitar prejuízos decorrentes de simulações, fraudes e ocultação de patrimônio, ao trazer mecanismos para tornar ineficazes práticas ilícitas do devedor. A teoria, porém, só pode ser invocada se não estiver prescrito o crédito fraudado ou simulado.
É relevante o alinhamento do novo CPC à jurisprudência pacificada. Ele deixou, por exemplo, mais explícita a necessidade de se observar o direito de ampla defesa, bem como disciplinou a desconsideração da pessoa jurídica na forma “inversa” – quando se adentra ao patrimônio da sociedade para pagamento de dívida pessoal do sócio.
A decisão judicial que decreta a desconsideração da personalidade jurídica somente resolve uma questão processual
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou nesse sentido: “A falta de citação do sócio, por si só, na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, não induz nulidade, que somente deve ser reconhecida nos casos de efetivo prejuízo ao exercício da ampla defesa, o que não ocorreu no caso em apreço. Inaplicabilidade do art. 135 do Código de Processo Civil de 2015 à luz do princípio ‘tempus regit actum’.” (STJ – AgInt nos EDcl no REsp 1422020/SP, Rel. Min. Ricardo VIllas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 24/04/2018).
A observância do contraditório e da ampla defesa evitam decisões injustas e descabidas, como por exemplo, quando a pessoa jurídica não paga porque simplesmente não tem patrimônio. Ou então quando promoveu uma dissolução irregular perante a Junta Comercial, sem incorrer em fraude ou simulação. O STJ tem entendido que: “a mera insolvência da pessoa jurídica ou sua dissolução irregular sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica” (STJ – AgInt nos EDcl nos EDcl no AREsp 1117129/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 10/04/2018; no mesmo sentido: AgInt no AREsp 1204607/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 15/03/2018).
Neste sentido, o STJ já disse que “para aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC/2002), exige-se a comprovação de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros) ou confusão patrimonial, requisitos que não se presumem mesmo em casos de dissolução irregular ou de insolvência da sociedade empresária. (…) deve ser garantida aos sócios a possibilidade de produzirem prova apta, ao menos em tese, a demonstrar a ausência de conduta abusiva ou fraudulenta no uso da personalidade jurídica, sob pena de indevido cerceamento de defesa.” (STJ – REsp 1572655/RJ, Rel. Min. Ricardo VIllas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 20/03/2018).
O STJ também entende que, se o sócio tiver apenas um único bem imóvel que sirva de morada, não tendo outros bens penhoráveis, a penhora não pode recair sobre esse bem de família: “a desconsideração da personalidade jurídica, por si só, não afasta a impenhorabilidade do bem de família, inclusive no âmbito da falência, não se podendo, por analogia ou esforço hermenêutico, superar a proteção conferida à entidade familiar, pois as exceções legais à impenhorabilidade devem ser interpretadas restritivamente.” (STJ – AgInt no REsp 1669123/RS, Rel. Des. Lázaro Guimarães, 4ª Turma, julgado em 15/03/2018).
Decisão recente do tribunal diz também ser impossível que a desconsideração atinja o patrimônio do acionista minoritário: “apenas os administradores da sociedade anônima e seus acionistas controladores podem ser responsabilizados pelos atos de gestão e pela utilização abusiva da empresa”. (STJ – AgInt no AREsp 331.644/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, julgado em 06/02/2018).
Da mesma forma entende o Tribunal de Justiça de São Paulo: “somente cabe responsabilizar o sócio com poderes de administração, não demonstrada a participação do sócio minoritário no ato irregular que ensejou a adoção da medida excepcional.” (TJSP- A.I. 2250711-98.2017.8.26.0000, Rel. Des. Melo Colombi; 14ª Câmara de Direito Privado; julgado em 06/03/2018).
A premissa é de que o sócio-administrador age com dolo ou culpa no ato abusivo, sendo que o sócio minoritário responde apenas excepcionalmente, ou seja, quando sua conduta omissiva ou comissiva contribuiu para a ocorrência do evento que autoriza a desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido vai o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: “Descabe a inclusão de sócio minoritário no polo passivo da execução, em razão da desconsideração da personalidade jurídica, quando não possui cargo de gestão, nem tampouco comprovado que tenha concorrido para a dissolução irregular da empresa executada.” (TJRS – Apelação Cível Nº 70075687186, 10ª Câmara Cível, Rel. Jorge Alberto Schreiner Pestana, julgado em 26/04/2018).
É importante destacar, porém, que a decisão judicial que decreta a desconsideração da personalidade jurídica somente resolve uma questão processual, determinando que o sócio se torne parte executada, mas não implica sua condenação.
Arthur Mendes Lobo é doutor em direito processual civil pela PUC-SP, professor de Direito Empresarial da UFPR e sócio no Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor Econômico- 20/6/2018-