Para muitas pessoas, o carnaval simboliza excesso.
Para outras, nem tanto.
Mas, para quase todas, pelo menos no Brasil, ele representa o abandono provisório das rotinas.
No “cotidiano” do compositor Chico Buarque, “todo dia ela faz tudo sempre igual”; mas, no carnaval, certamente não.
Pois é. Acontece que, mesmo essa regra carnavalesca [de sair da rotina no carnaval], tem exceção.
Afinal, toda regra tem exceção.
No meu caso – e, certamente, no caso de muitos colegas meus, advogados cariocas – ficamos, em pleno carnaval, confirmando a regra da exceção. E […] cumprindo prazos!
Em vez de pular o carnaval no bloco dos “Escravos da Mauá”, estávamos, eu e meus colegas advogados, em casa, no bloco dos “Escravos dos Prazos Processuais”.
Brincadeiras à parte, tudo isso só aconteceu, porque o NOVO CPC ainda não entrou em vigor.
A Luta da OAB e a consciência e a sensibilidade dos legisladores permitiram que uma nova lógica fosse introduzida na sistemática de contagem dos prazos processuais.
Felizmente, a partir de março, o artigo 219 do NOVO CPC garante a contagem dos prazos processuais apenas em dias úteis e permite, com isso, que, diferentemente do que ocorreu este ano [e em todos os anos anteriores], nós, advogados privados, possamos pular os nossos carnavais em blocos de verdade.
O art. 219 garante que, “na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis”.
No ritmo de pós-carnaval, faço aqui uma defesa explícita à nova regra de contagem dos prazos processuais e não o faço, apenas, porque eu sou advogada ou porque, pessoalmente, tenha ficado brava por ter perdido o carnaval carioca.
Defendo a nova regra do CPC, porque acredito que ela seja benéfica para os próprios jurisdicionados. E também para a isonomia de tratamento dos diferentes atores do processo. Sendo assim, ela é boa para o processo civil brasileiro como um todo.
E por que digo isso?
Porque, com certeza, nenhum Defensor Público, Promotor de Justiça, Juiz, Procurador do Estado, do Município ou da Fazenda, Desembargador, Ministro ou funcionário público teve sua agenda comprometida ou foi surpreendido com eventuais publicações realizadas na véspera do carnaval.
Para eles, ou os prazos são impróprios, ou, em sendo próprios, ainda, assim, a contagem considera a exiguidade do tempo e o compensa, sendo realizada em dobro ou em quádruplo, e, sempre, a partir de intimação pessoal.
É apenas no caso dos advogados privados, que a contagem não comporta exceções, e se dá de forma contínua, a partir da publicação no Diário Oficial e sem suspensão ou interrupção em feriados ou finais de semana. Por isso mesmo, no caso do carnaval, somente nós, advogados privados, fomos surpreendidos com publicações que desviaram as expectativas de nossa agenda carnavalesca.
Embora o NOVO CPC mantenha o trato diferenciado da advocacia pública e da defensoria pública na contagem dos prazos, mantendo o privilégio da contagem em dobro (arts. 183 e 186 do NOVO CPC), ao menos a nova metodologia de contagem minimiza os seus efeitos perversos sobre a advocacia privada, ao considerar apenas os dias úteis.
Hoje, no sistema do artigo 178 do atual CPC, a contagem dos prazos processuais se dá em dias contínuos, independentemente de feriados ou finais de semana.
Concretamente, a título ilustrativo, as decisões publicadas na quinta-feira anterior ao carnaval, dia 04/02/2016, tiveram o seu prazo de início contabilizado a partir do dia seguinte ao da publicação, ou seja, sexta-feira véspera de carnaval, dia 05/02/2016, sendo certo que um prazo de 5 dias venceu, impreterivelmente, em plena quarta-feira de cinzas.
Os prazos que eu própria fiquei fazendo neste carnaval, por exemplo, decorreram de publicações dos Tribunais Estaduais e Superiores, realizadas, justamente, na quinta-feira, dia 04/02/2016, véspera de carnaval.
Em havendo processos físicos, a disponibilidade dos autos para a extração de cópias só ocorreu na sexta-feira, véspera de carnaval, e a contagem do prazo [que ainda desconsidera os dias úteis], invadiu o período carnavalesco, de modo que as peças tiveram de ser elaboradas durante o carnaval, e os respectivos protocolos, na quarta-feira de cinzas, no caso do STJ, e na quinta-feira, no caso do TJERJ.
Além da elaboração das peças, poderia ter sido necessário recolher custas, preenchendo a guia e pagando-a nesse curto período de tempo, sem contar com o estudo e as pesquisas exigidas para a elaboração das peças, sem acesso a bibliotecas e/ou livrarias, já que, no carnaval, todos saem de suas rotinas, inclusive, bancos, bibliotecas e livrarias.
Alguns podem pensar que, hoje, a internet salva, mas não se trata disso.
O NOVO CPC é nacional e atinge os recônditos deste País, de proporção e acesso material desigual.
Ora, publicações de decisões, acórdãos e sentenças no dia 04/02/2016, podem ter ensejado a elaboração de recursos sofisticados, como um Agravo Interno, ou Embargos de Declaração, de modo que, obviamente, o vencimento do prazo em plena quarta-feira de cinzas, se não prejudicou, certamente dificultou o pleno exercício do direito de defesa dos jurisdicionados.
Tenho lido alguns textos e ouvido certos comentários incitando a declaração de inconstitucionalidade do artigo 219 do NOVO CPC, por ofensa à duração razoável do processo, e, devo dizer, honestamente, que acredito que só defenda esta tese quem nunca teve de ficar em casa, em pleno carnaval, férias, finais de semana ou feriados, cumprindo prazos processuais!
E aqui, faço esta crítica para provocar outra reflexão, que considero igualmente necessária.
Acho que devemos começar a olhar para o NOVO CPC desnudados de uma lógica exclusivamente corporativa.
A lógica corporativa sempre deve nos mobilizar, obviamente, mas não apenas ela.
Temos de pensar sobre os benefícios ou prejuízos que o NOVO CPC traz, a partir de uma dimensão do processo civil brasileiro, e não dos nossos interesses particularizados.
E, no caso dos prazos, o ganho é para todos, não apenas para advogados privados.
Penso que, no que se refere ao NOVO CPC, quando olharmos para algum de seus institutos, temos de ter a honestidade intelectual e o compromisso público de analisar as suas consequências positivas ou negativas, para além de nossos interesses pessoais.
Logo, quero dizer, honestamente, que eu não estou aqui sustentando que o artigo 219 do NOVO CPC chega em boa hora, só porque eu sou advogada e, por acaso, tive meu carnaval prejudicado em função do sistema de contagem dos prazos processuais do CPC de 1973.
Ao contrário disso, em vez de defendermos o artigo 219 do NOVO CPC só porque somos advogados privados, ou de atacá-lo, só porque não o somos, penso que temos de refletir mais com a lógica das instituições de um estado democrático de Direito e da isonomia processual.
No caso concreto, considero que o artigo 219 do NOVO CPC é bom, porque permite a elaboração de uma defesa mais consistente; menos apressada; mais bem feita, porque fruto de pesquisa cautelosa; e, por que não dizer, melhor, em função de ser preparada por um profissional menos atordoado pela premência do tempo; circunstâncias estas que, conjugadas, atendem de modo mais eficaz às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
É fato que o NOVO CPC preza pela celeridade processual e visa dar efetividade ao princípio da duração razoável do processo.
Porém, como já ressaltara o Professor Daniel Assumpção Neves, em seu manual “Novo CPC – Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)”, também é certo que não é culpa exclusiva dos prazos o fato de o processo judicial demorar demais, muito além do tempo razoável. “Culpar os prazos por isso é inocência.”.
Quem conhece o cotidiano dos tribunais sabe, perfeitamente bem, que múltiplos fatores e variáveis incontroláveis afetam o trâmite de um processo judicial.
Desde a complexidade da causa até a burocracia cartorária; a falta de estrutura dos tribunais; o tempo subjetivo de atuação de cada ator do processo, sejam juízes, promotores, procuradores, advogados, defensores, oficiais de justiça ou escrivães; a agenda dos Juízos; a pauta dos Tribunais; o “tempo morto”, caracterizado pela espera entre os atos processuais; ou, até mesmo, eventual comportamento temerário das partes.
Sendo assim, considerar a norma inserta no artigo 219 do NOVO CPC inconstitucional, por ofensa ao princípio da duração razoável do processo, [como eu já ouvi e li, aqui e acolá], só porque ela prevê a contagem dos prazos processuais apenas em dias úteis, é, no mínimo, inocência, como bem disse o Professor Daniel Assumpção.
Considero um equívoco que os “não advogados privados” ataquem o artigo 219 do NOVO CPC, taxando-o de “vilão da celeridade”, pelo simples fato de não serem beneficiados por ele.
E, por essa mesma razão, acredito que qualquer postura crítica deva passar, antes, por um filtro de consciência e de honestidade intelectual, para que possamos estar seguros de que – para além de estarmos falando a partir de um lugar e, aqui, eu estou falando da minha posição de advogada privada – também estejamos falando para algum lugar: o lugar da democracia, da coisa pública e do processo justo.
Sendo assim, independentemente de nossos interesses particularizados, proponho que pensemos o NOVO CPC a partir de uma dimensão pública, refletindo sobre os ganhos institucionais de certas práticas e inovações, ou sobre os retrocessos de outros.
Hoje, somente nós, advogados privados, ficamos reféns dos prazos processuais, nos termos aqui explicitados.
Pior do que isso, ficamos reféns de prazos que anotamos em uma agenda que não é controlada por nós, já que são os Tribunais que ordenam as datas das publicações a partir das quais nossos prazos se iniciarão.
Temos o controle dos prazos, mas não temos a previsibilidade das agendas.
Isso, para qualquer classe profissional, e para o Direito Processual, em si, é ruim.
Logo, considero, independentemente (ou apesar) da minha profissão, que o artigo 219 chega em boa hora, ou, talvez, com atraso, e acredito que este dispositivo funcionará não apenas como garantia da igualdade de classes profissionais, mas também como garantia do exercício da ampla defesa e do contraditório com paridade de armas.
28/2/2016
Fonte- http://jota.uol.com.br/o-carnaval-dos-prazos-processuais-e-a-esperanca-do-novo-cpc