Do pacote de R$ 83 bilhões de incentivo ao crédito, anunciado pelo governo federal no fim de janeiro, R$ 49 bilhões são do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A presidente Dilma Rousseff vai propor ao Congresso uma lei para que o FGTS possa ser usado como garantia de empréstimos consignados. A medida pode diminuir o risco dos bancos sem, obrigatoriamente, resultar em juros mais baixos. “Tem de perguntar ao trabalhador se ele aceita isso”, disse Luigi Nesse, membro do conselho curador do FGTS. “Se fosse eu, não concordaria.”
Ah, esse detalhe chamado “trabalhador”… Em nome dele, o governo Castelo Branco criou o FGTS, em 1966. Com o suor dele, o fundo acumulou R$ 466 bilhões em 2014. É um belo dinheiro, suficiente para comprar cinco vezes a Petrobras. Apesar de feitos um para o outro, trabalhador e FGTS sofrem de um feitiço de Áquila. O dinheiro é dele, mas ele não pode tocar. Mesmo se estiver endividado. Mesmo se quiser abrir uma empresa – ou comprar comida. Não pode. A graça só lhe é concedida em casos como doença grave, aposentadoria ou desemprego. Profissionais negociam a própria demissão não por desgostar da empresa, mas para sacar o saldo do fundo. Sacrificam a carreira para evitar que o dinheiro vire pó.
O FGTS foi criado como uma poupança forçada, um acúmulo de dinheiro. Na prática, é um dreno de riquezas. O saldo do fundo rende por ano a Taxa Referencial (TR) mais 3% – reajuste incapaz de compensar a inflação. A partir de 2019, o FGTS terá de seguir o reajuste da poupança, que tem gerado rendimentos abaixo da inflação. “Quando estamos falando de aplicações de longo prazo, tudo o que rende abaixo da inflação está perdendo valor”, diz Myrian Lund, professora de finanças da pós-graduação da Fundação Getulio Vargas. “Quando se faz um investimento, a única coisa que se espera é que, na pior das hipóteses, ele supere a inflação”, diz André Moraes, analista-chefe da corretora XP Investimentos. Para o analista, ao longo da última década teria sido melhor aplicar o saldo do FGTS em um fundo ligado ao índice Ibovespa – uma cesta de ações de empresas listadas na Bolsa. O dinheiro dos trabalhadores teria rendido 140% mais. Além disso, seria uma forma mais transparente de incentivar a economia.
O trabalhador não pode tocar no dinheiro do FGTS, mas muita gente pode. O fundo é gerido por um conselho formado por representantes do governo, de entidades patronais e de sindicatos. Os sindicatos estão ali para representar o trabalhador, ao menos na teoria. “Que contribuição os sindicatos deram à administração até hoje?”, diz Almir Pazzianotto, ministro do Trabalho no governo Sarney. “A Caixa manda no fundo e o governo manda na Caixa.” O FGTS tornou-se um dos cofres a que o governo recorre para tapar seus buracos e fazer investimentos de retorno duvidoso. Em 2007, o governo Lula criou o FI-FGTS, um fundo de investimentos para estimular projetos de infraestrutura – um remendo ao cofre furado do BNDES. No último balanço, o FI-FGTS tinha patrimônio de R$ 31,9 bilhões. Segundo ÉPOCA revelou em dezembro, a Procuradoria-Geral da República apura que Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, cobrou R$ 52 milhões em propina para liberar dinheiro do FI-FGTS. “A destinação desse dinheiro não é transparente”, diz a professora Myriam Lund.
Há cinco décadas, o FGTS serviu para substituir o direito a estabilidade dado a funcionários com dez anos de casa. “A estabilidade de direito havia se tornado instabilidade de fato, pois a prática de despedir os trabalhadores aos nove anos de casa havia se transformado em regra, não exceção”, escreveu o economista Mario Henrique Simonsen, no livro O governo Castelo Branco. “Antigos empregados desperdiçavam oportunidade de progresso pessoal em novo emprego, para não perder os direitos de estabilidade do antigo. Empresas tradicionais viviam oprimidas por um volumoso passivo trabalhista.” O então recém-criado Banco Nacional da Habitação (BNH) usou o dinheiro do fundo para investir em casas populares. O FGTS aliviava o baque do desemprego e dava mobilidade às empresas. Hoje, a contribuição para o fundo é um freio à competitividade, um benefício que a empresa paga e o funcionário não sente. Corrompido em seus fins e meios, o FGTS ainda faz sentido?
ÉPOCA — Por que o senhor é contra a extinção do FGTS?
Almir Pazzianotto — Fui contra a criação do FGTS, em 1966, quando eu era advogado de sindicatos. Com o tempo, mudei de opinião. A ideia do fundo se mostrou tão boa que, na Constituição de 1988, foi consagrada como um direito social. Ao lado do seguro-desemprego, criado por mim no governo Sarney, o FGTS forma a rede de proteção do trabalhador em caso de desemprego. Se o fundo sai, outra coisa precisa entrar. O quê? Traríamos de volta a indenização e o regime de estabilidade? Se alguém apresentar uma fórmula bastante convincente, teremos a obrigação de examinar. Mas só falar em supressão do fundo é impossível.
ÉPOCA — Por que não entregar o dinheiro diretamente ao trabalhador?
Pazzianotto — O FGTS é uma garantia de que o trabalhador terá dinheiro guardado para enfrentar um período de desemprego. O Estado age de maneira paternalista ao forçar uma poupança, mas nossa imprevidência é da natureza humana. Tem gente que, com o salário, não leva leite para o filho, prefere comprar cigarro. Tem mais: se o dinheiro do FGTS fosse incorporado ao salário, a inflação o comeria em 15 dias. Se o empregador incorporar a remuneração, daqui a pouco tentaremos criar outro fundo, com os mesmos defeitos deste aqui. Não tenho dúvidas de que surgiria de novo a ideia de criar um fundo.
ÉPOCA — Há duas décadas o fator de correção adotado para o FGTS é inferior à inflação. Por que forçar uma poupança tão ruim?
Pazzianotto — A situação do FGTS é, desde sua fundação, muito nebulosa. Mas isso é um problema de gestão do fundo, não de sua existência. O meu dinheiro no banco eu movimento. Num fundo de garantia, essa administração é de um conselho curador, formado por representantes de sindicatos. Temos o caso Bancoop (Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo, acusada de desviar dinheiro para o PT) para mostrar que o sindicato não é tão sério, não é isso? Como essas entidades sindicais são pelegas, que tipo de representantes elas indicam? Que contribuição os sindicatos deram à administração do fundo, até hoje? Na verdade, a Caixa manda no fundo e o governo manda na Caixa. O governo acaba fazendo com o FGTS o que no passado fez com o dinheiro da Previdência. O caixa do FGTS deve ser tentador, para um governo em crise, extremamente endividado. Acho que não podemos manter essa concentração de depósitos na Caixa. Ela já detém o monopólio dos jogos. O depósito do FGTS deveria ser disputado pelos bancos. Digamos que eu seja da General Motors e tenha 15 mil empregados. Quero ver quanto me pagariam o Bradesco, o Itaú… Por que não? Outros bancos poderiam oferecer o dobro da remuneração dada hoje pela Caixa.
ÉPOCA — Por que devo juntar dinheiro por anos, indefinidamente, à espera de uma demissão?
Pazzianotto — Essa é uma deficiência. Salvo exceções, a lei limita o saque a demissão sem justa causa, morte ou doença grave. Muitos trabalhadores pedem para ser demitidos de tempos em tempos, apenas para poder sacar. As empresas mandam embora um funcionário já treinado e adaptado, no auge da produtividade, apenas porque quer trocar o carro, fazer uma reforma em casa, pagar dívidas… Esse dinheiro é dele. Devemos dar a ele. Poderíamos permitir o saque, de tempos em tempos. Talvez não a cada ano de serviço. Mas a cada cinco, seis anos, é perfeitamente possível. Assim o empregado seria estimulado a permanecer no emprego, não a sair.
ÉPOCA – O FGTS faz sentido? Por quê?
Bernardo Guimarães – Não. É possível que alguma poupança forçada fizesse sentido, mas do jeito que ele é hoje não, não faz. Pensamos no FGTS como algo a mais que a empresa paga ao trabalhador e que, se tirássemos o FGTS, tudo ficaria igual. Isso não é verdade. Se a empresa não pagar o FGTS, estará disposta a pagar mais ao trabalhador. Quando uma empresa pensa em contratar alguém, pensa no custo total. Os salários são determinados por isso. Se tirarmos o FGTS, as empresas estarão dispostas a pagar mais. O FGTS é uma parte do dinheiro que a empresa paga para o trabalhador, mas ele não recebe diretamente. O dinheiro é depositado numa conta e tributado de maneira esdrúxula. Isso não faz sentido nenhum.
ÉPOCA – O FGTS não é apenas um dinheiro retido. Ele é corrigido.
Guimarães – A correção do saldo do FGTS é muito ruim: TR+3%, o que hoje equivale a 5% ao ano. Para quem trabalha por muitos anos em uma mesma empresa, o caso de bastante gente, isso é bastante significativo. O trabalhador vai perdendo dinheiro ao longo dos anos. Depois de um tempo, ele não tem nada. Faria sentido tirar uma parte do salário e destiná-la a uma aplicação que renda como outra qualquer. Assim, quando o trabalhador perder o emprego ou pedir demissão e quiser abrir o próprio negócio, aquele dinheiro será dele. Não precisamos do joguinho inútil entre o funcionário que deseja ser mandado embora para pegar o dinheiro do FGTS e a empresa que não quer despedi-lo. Não é bom para ninguém.
ÉPOCA – O que garante que o empregador transformaria o percentual antes destinado ao FGTS em aumento salarial para o trabalhador?
Guimarães – No momento da transição poderíamos dizer que o dinheiro que iria para o FGTS seria incorporado ao salário – é como se a gente dissesse que iria acabar com o 13o salário e aumentar o salário um pouco todo mês para compensar. Essa é uma questão contábil. É muito simples fazer a lei de uma forma que o empregador incorpore ao salário o que ele pagava de FGTS. Mas ao que precisamos atentar é que a grande maioria de nós não ganha o piso salarial determinado como mínimo para suas profissões. E por que as empresas não pagam o mínimo? Porque os salários são determinados antes de qualquer coisa pela competição entre as empresas. O que levanta meu salário não é uma lei que determina quanto as empresas devem me pagar, mas a competição entre elas. Se a gente fizer uma lei que diz que o FGTS será automaticamente incorporado ao salário, vamos manter as coisas do mesmo jeito que estão. As empresas continuarão dispostas a pagar o mesmo. A decisão sobre o FGTS parte do princípio de que ele pode ser o “a mais” que a empresa daria para as pessoas.
ÉPOCA – Acabar com o FGTS não seria jogar parte da população no escuro, especialmente quem não tem educação financeira?
Guimarães – Se quisermos um sistema de poupança forçada, o que precisamos fazer não é um FGTS. Precisamos que o trabalhador poupe um pouco de seu dinheiro, nos primeiros dois anos de trabalho na empresa, por exemplo, com um rendimento compatível com aplicações do mercado, e que não tenha essa coisa de o governo precisar do dinheiro e usar. Isso não faz sentido. Depois de dois ou três anos contribuindo para essa conta, você não vai mais ficar poupando para uma conta por 20 anos. É seu dinheiro, você usa como você quiser. Não precisa esperar a empresa mandar embora para isso.
Fonte: Época, por Marcelo Moura e Graziele Oliveira, 15.02.2016; Clipping Granadeiro- 16/2/2016- http://www.granadeiro.adv.br/destaque/2016/02/16/o-fgts-ainda-faz-sentido