O atual Código de Processo Civil, vigente há mais de um ano, dedica atenção especial ao que se pode chamar de direito jurisprudencial, demonstrando preocupação com a estabilidade, a integridade e a coerência das decisões dos tribunais brasileiros.
Assim o faz com razão, pois a influência da jurisprudência na formação do direito brasileiro, de origem romano-germânica, não é tão comum e compreendida quanto nos países que adotam o sistema de “common law”.
Esse receio tem nome e sobrenome: jurisprudência lotérica. Referida expressão, alcunhada por Eduardo Cambi, advém da notória instabilidade decisória dos tribunais, que, por vezes, exaram pronunciamentos judiciais diametralmente opostos para casos semelhantes, quando não idênticos. É dizer, uma mesma questão jurídica acaba sendo julgada por duas ou mais maneiras diferentes.
Se for empregado da forma adequada, o IAC contribuirá para manter a jurisprudência estável e coerente
Como efeito, tal cenário incute no jurisdicionado uma sensação de insegurança e quebra de isonomia, na medida em que se torna cada dia mais árduo prever um resultado acerca de determinado caso, ainda que existentes diversos julgados em favor de uma ou outra tese posta a julgamento. Já disse o italiano Michele Taruffo que a existência de entendimentos conflitantes para situações análogas nos leva a fazer do uso da jurisprudência uma “atividade complicada, difícil e arriscada”. E isso é indesejável num Estado Democrático de Direito.
Evidentemente, não se pode esperar que os tribunais exerçam a função jurisdicional em absoluta sintonia fina, de modo que é compreensível que haja alguma – não muita – incoerência nas decisões judiciais. O problema reside justamente quando a patologia aproxima-se de ser a regra, tal como tem se visto há tempos.
O chamado incidente de assunção de competência (IAC) é um dos instrumentos estabelecidos pelo CPC para combater a loteria jurisprudencial.
Por meio dele, é possível que as partes litigantes ou o próprio relator do recurso, em qualquer tribunal, suscite a assunção de competência na hipótese de o caso a ser julgado versar sobre questão relevante de direito, com grande repercussão social, desde que não seja objeto de múltiplos processos, o que revela que a litigiosidade repetitiva não é tutelada pelo IAC.
A lei processual civil estabelece que o IAC tem por escopo dirimir questão jurídica de importância nacional, a fim de prevenir ou compor divergência interna no tribunal. Para assegurar a segurança jurídica e o tratamento igualitário, exige-se que as decisões emanadas do julgamento desse incidente sejam respeitadas pelo Poder Judiciário (e, ao que parece, também por órgãos administrativos).
Entende-se, portanto, que o julgamento do IAC forma precedente vinculante, ou qualificado, para se utilizar a terminologia do Regimento Interno do STJ, que foi remodelado a partir da publicação da Emenda Regimental 24. Sem levar em conta as intempéries que circundam o estudo dos precedentes judiciais na doutrina, importa ter em mente o seguinte: o que restar decidido pelo tribunal em sede de IAC deve ser acatado, salvo, é claro, se as peculiaridades do caso concreto não se amoldarem ao julgado anterior.
Em meados do mês de outubro, a 1ª Seção do STJ afetou dois recursos ao rito do IAC (RMS 53.720/SP e RMS 54.712/SP). Está em discussão, nesses casos, o cabimento da impetração de mandado de segurança para impugnar ato judicial que extingue a execução fiscal com fundamento no art. 34 da Lei 6.830/1980. As afetações foram solicitadas pelo relator, ministro Sérgio Kukina, sem provocação das partes, por entender que, nada obstante a 1ª Seção ter firmado orientação pelo cabimento da medida, as duas turmas que a compõem ainda divergem a respeito do tema.
A instauração do IAC foi também suscitada pela 2ª Seção do STJ, em ocasião pretérita, no bojo de recurso especial relatado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze (REsp 1.604.412/SC). A controvérsia que levou à afetação diz respeito ao cabimento da prescrição intercorrente nos feitos anteriores ao CPC de 2015, e à eventual imprescindibilidade de intimação e de oportunidade prévia para o credor dar andamento a processo paralisado por tempo superior ao prescrito em lei para ser declarada a prescrição da pretensão. Esse foi, a título de curiosidade, o primeiro IAC admitido pelo STJ desde o advento do novo CPC.
Até a data da redação deste breve artigo, nenhum dos casos acima mencionados havia sido julgado. Sem embargo, vale registrar que o remédio processual contra o descumprimento da decisão oriunda do julgamento do IAC é a reclamação, que também se encontra prevista no CPC e no Regimento Interno do STJ.
Pode-se concluir que o IAC é um dos principais mecanismos disponibilizados pelo diploma processual civil para que se alcance a uniformização da orientação dos tribunais. Se for empregado da forma adequada, poderá contribuir, de fato, para manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente. O STJ tem sinalizado que está caminhando na direção correta.
Gustavo Fávero Vaughn é advogado associado do escritório Cesar Asfor Rocha Advogados
Por Gustavo Fávero Vaughn
Fonte : Valor Econômico- 23/11/2017-