Tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, projeto que visa alterar pontos do Código Penal brasileiro. As principais pautas de discussão entre os parlamentares são estabelecer prazo fixo das prisões preventivas, que atualmente não têm limite de tempo para a reclusão do investigado; e a consideração de detenção do chamado trânsito em julgado, quando todas as instâncias são percorridas, inclusive o STF (Supremo Tribunal Federal).
Além dos assuntos que estão no texto que está nas mãos do relator da matéria em Comissão Especial, João Campos (PRB-GO), a Casa analisa pautas como revisão dos termos da delação premiada, em que o intuito é que o juiz participe não só da homologação dos acordos, mas também das negociações junto da acusação e da defesa, além de tentar estabelecer punições para condução coercitiva em episódios que seja constatado abuso de autoridade.
O Diário conversou com especialistas e deputados para debater, ponto a ponto, as propostas em análise em Brasília.
DELAÇÃO PREMIADA – Atualmente, o acordo de delação premiada, instrumento utilizado nas investigações da Operação Lava Jato, é feito entre as partes do caso, ou seja, acusação e defesa, Ministério Público e réu. Uma das sugestões de alteração ao Código Penal é que o juiz participe desde o início do processo, na fase das negociações do acordo de delação, para haver celeridade nos casos.
Este ponto não é unanimidade entre especialistas em processo penal. Para o professor da área na PUC-SP Maurício Januzzi, isto pode, de fato, representar maior velocidade nas investigações. “O juiz que julga que tem de ouvir o que o delator tem para dizer. Ao fim disso, homologa, concordando ou não. Não (é plausível) o MP propor isso. Hoje, fica nas mãos do órgão da acusação. É esquisito”, avaliou o professor.
“O juiz deve cumprir o papel de julgador, mas também o papel de intermediador, acompanhar desde o início os acordos”, complementou o deputado federal com base eleitoral no Grande ABC Alex Manente (PPS).
Mas Thiago Bottino, que ministra aulas de processo penal na FGV (Fundação Getulio Vargas) no Rio de Janeiro, essa alteração prejudicaria o julgamento final, pois o juiz não iria conseguir se manter imparcial em relação ao caso por estar muito próximo às investigações desde seu início. “O juiz não deve participar de negociação, na medida em que deve haver um ator imparcial, que pode analisar o caso com distanciamento. Ele tem que ter um olhar (de fora) porque se ele participa das negociações, acaba se envolvendo e perde este distanciamento, que pode comprometer a imparcialidade dele”, explicou Bottino.
Para o docente, uma revisão necessária à delação premiada é a irrevogabilidade da negociação. “O acordo deveria ter uma homologação provisória e os efeitos só se tornariam definitivos depois que o juiz diz que a colaboração foi útil. Senão, (o delator) fala qualquer coisa, não comprova, e usufrui dos benefícios (do acordo, já que não pode ser revisado)”, ponderou. “Eu compro seu carro, você desconta meu cheque e ele está sem fundos, eu fico com seu carro?”
Alex Manente concorda que a delação premiada deve ter revisão de termos. “(O delator) Pode diminuir a pena (com a delação), mas liberar (das punições), como ocorre em alguns casos, eu sou contra”, discorreu. Esse foi o caso de Joesley Batista, um dos donos da JBS, na colaboração da investigação de corrupção que envolveu o presidente da República, Michel Temer (PMDB).
SEGUNDA INSTÂNCIA – De acordo com a Constituição Federal, em seu artigo 5º, a prisão apenas pode ocorrer após o trânsito em julgado, ou seja, depois de passar pelo crivo do Supremo Tribunal. Mas, por conta de jurisprudência aberta pelo próprio STF, alguns casos passaram a ter prisões após segunda instância, mesmo que ainda caibam recursos superiores que sejam contrários à decisão.
O professor de processo penal da USP Gustavo Badaró acredita que o STF fez uma “ginástica interpretativa” para considerar segunda instância o trânsito em julgado. “O problema é a demora até o trânsito, ou seja, deve ser mais rápido o julgamento do processo”, disse.
“O que o Supremo decidiu contraria a Constituição”, concordou Thiago Bottino, da FGV-RJ. “O que eles (STF) fizeram foi atender clamor público (por velocidade na Justiça), entre aspas, fora dos limites da competência dele (Supremo). O juiz não tem mais poder que a lei, deve cumprir a lei”, completou Bottino.
Alex Manente diz ser “a favor de ter prisão após a segunda instância”. “Você tem uma Corte (para a decisão)”.
“O errado é a Justiça ser lenta demais para o número de processo que existem. Estão tentando corrigir erro com outro. Se tivéssemos mais juízes, e a culpa de não ter é do próprio Judiciário, que não quer aumentar (o contingente), teria mais celeridade. Quem estivesse preso já teria sido julgado em 100 dias, por exemplo. A incompetência do Judiciário causa isso”, disse Maurício Januzzi, professor da PUC-SP.
PRISÃO PREVENTIVA – Outro ponto em discussão sobre o Código Penal é o fato de a prisão preventiva, atualmente, não possui tempo máximo estipulado para a reclusão. A ideia é que o acusado fique na cadeia por no máximo 180 dias e que, se não for resolvido o caso, essa pessoa seja solta. “Estabelecer o prazo é interessante, porque determina que o processo termine neste prazo, para que a pessoa não fique presa por um, dois ou até três anos, como acontece hoje. Você tem o CDP (Centro de Detenção Provisória), em que todos eles estão sob virtude da preventiva. É só ver a quantidade de presos que tem lá hoje”, citou Maurício Januzzi, da PUC-SP, lembrando das superlotações de CDPs pelo País.
“Cento e oitenta dias é razoável, mas não significa que não possa renovar. Acaba virando antecipação da pena. O sistema é produção de fábrica. Ele (juiz) não tem como lembrar de todos os processos. Quando você tem um só, como é o caso do (Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato em primeira instância), consegue lembrar, Mas quando tem 100, 200, 1.000 (casos), é impossível”, argumentou Thiago Bottino, da FGV-RJ.
“Um prazo global de 180 dias é muito curto. Na maioria das legislações de outros países, os prazos são superiores. Com esse tempo é capaz de que não dê conta de terminar (todo trâmite jurídico até seu julgamento). (As pessoas podem) Ser colocadas em liberdade. Além disso, talvez haja um prazo legal, mas como não se consegue cumprir, a lei acaba não pegando, como se diz, e o tribunal o mantém na prisão, flexibilizando a lei”, afirmou Gustavo Badaró, da USP.
Para o deputado federal Alex Manente, o que deve ser discutido é o prazo máximo que se tem para a condenação em primeira instância. Para ele, se condenasse em tempo menor, não seria necessária a prisão preventiva. “Creio que, na primeira instância, seis meses seria um bom prazo para o julgamento.”
CONDUÇÃO COERCITIVA – A ideia para conduções coercitivas é punir casos de abusos de autoridade por parte de juízes em ações em que se caracterize que a condução, na verdade, não era necessária. Para especialistas, da forma como é feita hoje pode ser considerado ilegal. “A condução existe quando a pessoa não aparece depois de o réu ser convocado. Tem que se cumprir a lei, não existe função da condução para não combinar depoimentos (delatores). O réu tem o direito de ficar em silêncio. Gera um constrangimento muito grande, é um abuso de autoridade (do jeito que se faz)”, opinou Maurício Januzzi, da PUC-SP.
Relator da matéria na Câmara afirma que existem outras questões essenciais em discussão
O relator do projeto de lei que propõe alteração ao Código Penal na Câmara Federal, João Campos (PRB-GO), afirmou ao Diário que, além dos temas destacados acima, pautas como a possibilidade de limitação de recursos e cooperação transnacional em investigações estão no texto analisado por ele.
“O atual código, de 1941, traz a possibilidade de recursos infindáveis, e aí, sendo assim, vai além da garantia constitucional da ampla defesa. Porque assim, chega um momento (que o recurso) trabalha para obstruir a Justiça. O capítulo dos recursos é uma das grandes prioridades. É preciso garantir a ampla defesa, mas sem a obstrução da Justiça. Temos que ficar no limite da ampla defesa”, explicou o relator.
Além disso, para o deputado, é necessário regulamentar a cooperação jurídica internacional. “Hoje, o crime é transnacional (ocorre em mais de um país). É preciso que regulamentemos a cooperação dos países sobre provas, para que a prova produzida em outro país chegue em outro, por exemplo. Dependendo das circunstâncias, lá aproveitam (as provas), mas aqui não. Precisamos facilitar a cooperação e dar legitimidade a isso. Senão for feito o devido amparo legal, pode ser considerada ilegal. Hoje, temos quase um vazio legislativo em relação a isso. Temos alguns termos, mas falta regulamentação”, avaliou.
O deputado espera que o relatório final seja disponibilizado para os colegas até setembro.
Fonte- Diário do Grande ABC- 6/8/2017-
http://www.dgabc.com.br/Noticia/2762511/mudancas-a-vista-no-codigo-penal