Começa a valer no dia 1º de outubro o acordo internacional assinado pelo Brasil que permitirá à Receita Federal ter acesso aos dados financeiros de pessoas físicas e jurídicas em mais de 90 países. A data foi definida a partir do depósito do instrumento de ratificação na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – documento que confirma a participação do país na Convenção Multilateral sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Tributária.
Essa convenção, da qual os mais de 90 países são signatários, é considerada como o instrumento mais abrangente de cooperação tributária internacional. Por meio dela, os países trocarão informações como contas correntes e seus titulares, investimentos, previdência privada, ações, rendimentos de fundos, aluguéis e juros.
Para especialistas na área, o acordo pode incentivar a adesão de contribuintes ao programa de regularização de ativos do exterior – permitida por meio da Lei de Repatriação. “Quem não fizer estará sujeito a ser rastreado depois. Então, uma coisa vai ao encontro de outra. Não há mais como esconder. A Receita Federal terá acesso a tudo”, observa o advogado Douglas Mota, do escritório Demarest.
Até maio, segundo levantamento do Valor, um total de 180 contribuintes havia aderido ao regime. Pela lei, pessoas físicas e jurídicas com recursos ou patrimônio lícitos não declarados poderão regularizá-los mediante pagamento de 15% de Imposto de Renda e 15% de multa. O prazo para a adesão vai até 30 de outubro.
O advogado Luis Gustavo Bichara considera a repatriação como “inevitável”. “Não tem plano B”, diz. Ele chama a atenção para o artigo 11 da convenção multilateral, que prevê a cobrança de créditos fiscais de um país por outro. Ou seja, se um contribuinte que não aderiu à repatriação deixa o Brasil para morar na França e a fiscalização brasileira descobre que há recursos não declarados em um terceiro país, por exemplo, o governo francês poderá, a pedido do Brasil, cobrar os créditos fiscais.
“Então o sujeito, agora, pode ter uma dívida tributária no Brasil e amanhecer com uma penhora na França, Portugal ou qualquer outro país signatário da Convenção”, destaca Bichara.
A convenção foi firmada pelo Brasil em 2011, durante reunião da cúpula do G-20 em Cannes (França), e aprovado pelo Plenário do Senado em janeiro. Em abril deste ano, com a publicação do Decreto Legislativo 105 – divulgando aval do Senado ao texto – no Diário Oficial da União, mais um passo foi dado. Para a entrada em vigor, porém, ainda era necessário o depósito de instrumento de ratificação.
Pelas regras da convenção, o acordo entraria em vigor no primeiro dia do mês seguinte a um período de três meses após o depósito. Como foi feito em junho, chegou-se à data 1º de outubro. Isso significa que, na prática, o Brasil estará apto a trocar informações com os demais países signatários da convenção a partir deste dia.
Essa troca de informações, no entanto, poderá ser feita por meio de solicitação ao país onde estão os ativos dos contribuintes brasileiros. O intercâmbio automático – principal mecanismo previsto na convenção – começará a ser feito somente em 2018, com os dados referentes ao exercício de 2017.
“A troca automática é uma nova era”, diz o coordenador-geral de Relações Internacionais da Receita Federal, Flávio Araújo. “Ter dinheiro no exterior será como ter dinheiro aqui no Brasil. Receberemos as informações dos outros países da mesma forma como hoje recebemos as informações dos bancos brasileiros. Não haverá mais espaço para a ocultação de ativos financeiros e rendimentos no exterior”, completa.
Existem ainda outros dois formatos de troca automática de informações previstos na convenção. E, segundo Araújo, começarão antes no Brasil: em 2017, com os dados referentes a 2016. Um desses formatos se chama CBC (do inglês Country-by-Country Reporting). Trata-se de um relatório das operações do país por grupos multinacionais. “O objetivo é combater a erosão da base tributária e o deslocamento do lucro”, observa o coordenador da Receita.
Isso porque as multinacionais têm a possibilidade de distribuir as operações e o lucro entre os países em que atua – o que poderia ser usado como forma de economizar impostos. A estimativa é que dois terços das transações de comércio exterior no mundo sejam intragrupo (subsidiária se relacionando com a matriz, uma terceira empresa do mesmo grupo prestando serviço ou emprestando tecnologia).
Com a troca de informações ficará claro aos governos quanto, de fato, está sendo pago de imposto. A previsão é de que três mil grupos no mundo, com faturamento acima de 750 milhões de euros, sejam abrangidos.
O outro formato que prevê a troca de informações já em 2017 trata dos benefícios que são oferecidos pelos governos para que determinada empresa atue no seu país – sem que haja mudanças em lei. Essas decisões administrativas terão de ser informadas na troca entre os países. O impacto para o Brasil, neste caso, segundo especialistas, não será tão expressivo, já que aqui tudo o que envolve o fato gerador do tributo (data, alíquota e base de cálculo) tem que estar previsto em lei.
Receita reforça que é preciso declarar dinheiro já gasto
A Receita Federal fez ontem a tão esperada atualização na lista de perguntas e respostas sobre o programa de regularização de recursos não declarados no exterior, forma que tem usado para se comunicar com os contribuintes. O órgão surpreendeu, entretanto, ao não somente reforçar o entendimento que tem causado desconforto – sobre insuficiência de se declarar apenas o saldo no exterior em 31 de dezembro de 2014 -, como também não dar detalhes sobre como fazê-lo.
“A Receita perdeu uma boa oportunidade de reavaliar essas respostas que tinham sido dadas anteriormente, que trouxeram confusão, o que é um desserviço aos próprios propósitos arrecadatórios do governo”, diz Hermano Barbosa, tributarista do Barbosa, Müssnich, Aragão Advogados. Para ele, a Receita apenas ratificou o entendimento que tem gerado polêmica no mercado.
A resposta referente a como declarar bens que foram parcialmente consumidos até o fim de 2014 não foi alterada, somente ganhou duas notas explicativas. Na primeira, a Receita defende que a inclusão de recursos não mais existentes está prevista no artigo quarto da Lei nº 13.254, o mesmo usado por tributaristas para argumentar que quem tem saldo na conta em 31 de dezembro de 2014 deve declarar somente esse valor.
A segunda nota reforça que para extensão dos efeitos do regime a todas as condutas relacionadas aos bens havidos nessa data e em períodos anteriores é necessário declarar a totalidade dos recursos, o que inclui os bens de que o contribuinte não tenha mais saldo ou propriedade.
Não há detalhes nas notas sobre como tratar o passado – se pelo pico do patrimônio, por exemplo – nem a respeito de quanto é preciso retroceder no tempo, dúvidas levantadas pelo mercado desde que a Receita fez a última atualização na lista, em 24 de maio.
A interpretação da Receita, além de não esclarecer, não coincide com o texto original, na opinião de Barbosa. “A lei precisa escolher uma base de cálculo e escolheu o saldo em 31 de dezembro”, considera. Essa também foi a interpretação defendida nas últimas conversas com o governo pela Fiesp e pela Anbima, entidades representantes da indústria e do mercado que têm concentrado o diálogo.
Para o consultor jurídico da Fiesp, Hamilton Dias de Souza, a atualização na lista deixa clara que essa é a posição da Receita: declarar o histórico. Para ele, a interpretação mais sensata é a de que é preciso considerar o maior valor nos últimos cinco anos, período de decadência dos crimes tributários. “Acho uma pena, porque isso seguramente vai desestimular grande parte das pessoas físicas a declarar”, afirma o advogado.
Souza diz ainda que a Receita não esclareceu como lidar com o histórico no caso de empresas “offshore”, estruturas usadas com frequência para abrigar altos patrimônios no exterior. A pergunta foi feita por ele ao secretário adjunto da Receita Federal, Paulo Ricardo de Souza Cardoso, em um encontro na Fiesp na semana passada. De acordo com o advogado, ele disse que incluiria o tema na próxima lista de perguntas e respostas, o que não aconteceu.
A Receita também adicionou notas à pergunta sobre trusts, outra que gerou polêmica no mercado ao determinar que o beneficiário que desconhece a existência do trust ficará sujeito a sanções tributárias e criminais. Para Souza, a Receita também reafirmou nesse caso a interpretação anterior, o que considera errado. “Não vejo como aquele que não tem disponibilidade dos bens deva declarar”, considera, apontando que em alguns tipos de estrutura, como as que podem ser revogadas, pode ser que o beneficiário sequer tenha acesso ao patrimônio algum dia.
Fonte- Valor Econômico- 8/6/2016- http://www.seteco.com.br/receita-federal-tera-acesso-dados-no-exterior-partir-de-1o-de-outubro-valor-economico/