Embora não seja inédito, o direito das partes de convencionar sobre matéria processual ganha hoje ares de novidade, na esteira da edição do novo Código de Processo Civil (CPC/2015). De fato, os negócios processuais, mesmo já estando autorizados pelo art. 158 do moribundo diploma processual (CPC/1973), têm sido pouco utilizados no ambiente consultivo de nossa prática jurídica contratual, tolhida que foi pelas experiências negativas do contencioso judicial, onde doutrina e jurisprudência dominantes veem o processo civil como um ramo do direito público, arquitetado por normas cogentes, inafastáveis pela vontade dos particulares.
A ideia desse paradigma publicista é que o Judiciário, enquanto expressão do poder de império estatal, estaria acima das partes, cuja posição subalterna não permitiria que ditassem ao Estado preceitos de comando do processo. Resultado: disposições contratuais materialmente lícitas e razoáveis, que pretendam excepcionar ou modificar regras processuais inadequadas ao caso, dificilmente são executadas nos tribunais, gerando insegurança jurídica aos contratantes.
Na tentativa de mudar esse quadro e atento à exitosa experiência privatística da arbitragem, o CPC/2015 revigorou o tratamento dos negócios processuais, a fim de deixar ainda mais explícito que o CPC/1973 a plena juridicidade das partes para acordarem, antes ou durante o litígio judicial, sobre seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, de forma a ajustar o procedimento às especificidades da causa (art. 190). Espera-se que essa cláusula geral de atipicidade negocial acabe com a rígida e imperativa processualística vigente, dando início à aplicação efetiva de um modelo procedimental flexível, dialógico, no qual a autonomia privada terá aptidão de influenciar decisivamente nos métodos de realização da justiça pelo Estado, com ganhos de eficiência e legitimidade para o processo civil.
A convenção que cria patrimônio protegido de penhoras perante aqueles que não façam parte do contrato é ilegal
Renova-se, portanto, o desafio de se estabelecer, no plano do direito material dos contratos, as possibilidades e limites das disposições contratuais geradoras de efeitos no processo estatal de resolução de conflitos. Nesse contexto, deve ser evitada a chamada interpretação retrospectiva, em que institutos da lei nova são vistos pelas lentes da legislação antiga, de maneira que não haja mudanças. De outro lado, também há que se ter cautela com os excessos libertários próprios da autorregulação de interesses privados, sobretudo neste momento inicial de empolgação com os acordos processuais. Aqui, os contratantes devem estar cientes de que por mais que a lei tenha lhes dado discricionariedade para adaptar o procedimento judicial às particularidades da lide, a necessária participação do Estado-juiz no pacto e seu irrenunciável dever de cura dos interesses públicos impõem limitações adicionais à autonomia privada. Assim, no campo dos negócios processuais, as partes não detêm a mesma liberdade de estipulação verificada quando contratam apenas entre si.
Fixadas essas premissas, tem se cogitado em sede doutrinária acerca da convenção processual de impenhorabilidade de bens. Tal arranjo funciona como limitador da responsabilidade patrimonial dos contratantes, indicando que a contratualização do processo promovida pelo CPC/2015, mais que servir às partes para modelar aspectos puramente procedimentais, pode ser usada como poderosa ferramenta de modulação dos riscos, ao regular a responsabilidade civil contratual num cenário de conflito judicial.
Apesar da importância das cláusulas limitativas na organização econômica das atividades empresariais, sua concretização via ajuste de impenhorabilidade possui alcance adstrito somente às partes do contrato. Nesse contexto, o CPC/2015 permite no art. 848, II, que as partes possam indicar previamente no contrato quais bens poderão ser objeto de penhora, liberando o patrimônio eventualmente constrito que não faça parte do acordo.
Contudo, em relação a terceiros, vale o disposto no art. 789 do CPC/2015 que, reproduzindo o texto do art. 591 do CPC/1973, dispõe que salvo as restrições estabelecidas em lei, o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações. Ou seja, à luz do direito positivo, atual e futuro, a impenhorabilidade de bens e a limitação de responsabilidade dela derivada só podem ser opostas a terceiros por autorização legislativa. Mantém-se a regra geral da unicidade patrimonial, pela qual a pessoa somente pode ser titular de um único patrimônio, o qual engloba todos os seus bens, que são a garantia comum dos credores. Logo, a convenção processual que tencione criar um patrimônio protegido de penhoras judiciais perante aqueles que não façam parte do contrato é ilegal e não será executável judicialmente.
Com efeito, o método juridicamente adequado de se alcançar a limitação da responsabilidade pela segregação de bens segue sendo a boa e velha técnica da personificação societária, sobretudo as sociedades anônimas e limitadas, para as quais o sistema de direito material garante autonomia patrimonial oponível contra terceiros.
Fonte: Valor Econômico- 14/9/2015-
http://alfonsin.com.br/negcio-processual-e-impenhorabilidade-de-bens/