O argumento dos bancos de que o Brasil pode quebrar economicamente se o Supremo Tribunal Federal julgar a favor dos poupadores no caso dos planos econômicos é bobagem e alarmismo. A opinião é do ministro Dias Toffoli, a respeito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 165, que coloca bancos e poder público de um lado e poupadores do outro.
Advocacia-Geral da União e o Banco Central já pediram a suspensão do julgamento das ações. O pedido é para que seja feita uma audiência pública para debater os impactos financeiros da decisão do STF. Para o ministro, porém, o impacto não deve entrar na pauta. O STF, diz ele, deve julgar se o Estado tem legitimidade de interromper o processo inflacionário da maneira como ocorreu no Brasil.
“Se tiver de julgar a favor dos poupadores, o STF o julgará”, afirma Toffoli. Segundo ele, os julgadores não podem opor um direito à possibilidade de cumprir esse direito. “Quem tiver o direito vai receber”, diz o ministro, que já foi advogado-geral da União.
Em entrevista exclusiva à revista eletrônica Consultor Jurídico, o ministro abordou temas polêmicos, como o caso dos planos econômicos, o financiamento de campanha e o foro por prerrogativa de função — o chamado foro privilegiado.
A conversa se deu após palestra para cerca de 120 estudantes na Universidade Estadual Paulista, em São Paulo, na qual Toffoli falou sobre a função do Judiciário e do STF, após o golpe de 1964. Segundo o ministro, a corte avocou para si o Poder Moderador. Previsto na Constituição de 1824, na qual é um poder do imperador, o Poder Moderador passou, ao longo do tempo, para as mãos das forças armadas e, após o fim da ditadura militar, em 1985, chegou ao Supremo Tribunal Federal.
Entre as funções do Supremo, a de julgar governantes devido à prerrogativa de foro deve ser mantida, na visão de Toffoli. “Vivemos em um Estado Federal. Como colocar uma autoridade da nação para ser julgada pelo tribunal local? Não tem sentido.”
Leia a entrevista:
ConJur — O julgamento dos planos econômicos tem mobilizado bastante o setor privado e o setor público. Isso também se reflete na procura dos bancos e do governo pelos ministros do Supremo para tratar do assunto?
Dias Toffoli — Comigo não houve qualquer alteração na rotina de meu gabinete. Recebi e ouvi a todos: governo, consumidores e bancos.
ConJur — O julgamento opõe um direito e a possibilidade de cumpri-lo?
Dias Toffoli — Colocar a discussão nesses termos é reviver o debate entre a teoria interna e a teoria externa, a respeito de o direito conter ou não seus próprios limites em si mesmo ou se esses limites são externos ao direito. O Supremo não vai julgar contra os poupadores sob o exclusivo argumento de que se terá medo de quebrar o país. Se tiver de julgar a favor dos poupadores, o STF o julgará. Quem tiver direito vai receber. O país não quebrará por causa disso. Essa ideia de que o país quebrará é uma bobagem, um alarmismo. Esses argumentos ad terrorem não podem ser usados dessa maneira. Se alguém vota é porque tem convicção sobre haver fundamento para o direito alegado. Temos de analisar nesse caso se existe direito à inflação ou não. A meu ver, este é o cerne da causa. Dito de outro modo: se o Estado tem legitimidade de interromper o processo inflacionário da maneira como o fez.
ConJur — Se o Supremo confirmar a impossibilidade de empresas fazerem doação para partidos políticos e candidatos, o financiamento público de campanha é o próximo passo?
Dias Toffoli — Eu sou contra o financiamento público exclusivo. Considero que o cidadão tem o direito de contribuir ideologicamente para esta ou aquela visão de mundo que ele tenha. Assim como contribui para uma igreja, ele pode contribuir para um partido político. É necessário, evidentemente, que se estabeleça um teto de contribuição, de modo a que se evitem distorções ligadas à diferença de patrimônio entre os contribuintes. O que tenho por inadmissível é uma contribuição de pessoas jurídicas. A pessoa natural tem o direito de contribuir. Seria uma afronta à liberdade de participação política, que é inerente à cidadania das pessoas naturais, proibi-las de contribuir.
ConJur — O modelo misto, com financiamento público e privado, apenas de pessoas físicas, é o ideal?
Dias Toffoli — Acredito que o modelo misto seria o ideal, desde que estabelecido o teto de gastos e de contribuições.
ConJur — O Supremo tem poder para mandar o Congresso editar uma lei, como a OAB pede nessa ação sobre o financiamento de campanha?
Dias Toffoli — O Supremo tem legitimidade jurídico-política para julgar uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Nessa ação, a OAB apresentou elementos demonstrando a existência de inconstitucionalidade por ação e por omissão. Em vez de elaborar duas petições, a Ordem jungiu os dois pedidos em um única ação. Poderia ter entrado com duas ações, mas diante da conexão entendo factível o pedido da Ordem dirigir-se à inconstitucionalidades por ação e por omissão em uma só ação. O Supremo pode declarar que o Congresso se manteve omisso. Ele já fez isso diversas vezes. No caso da revisão geral anual, no julgamento do salário mínimo e da greve dos servidores públicos. Ocorre que atualmente procura-se dar maior efetividade a tais espécies de decisões.
ConJur — O Brasil precisa de uma reforma política ou eleitoral?
Dias Toffoli — Não existe país no mundo com sistema perfeito. Os EUA têm eleições indiretas para presidente até hoje. O sistema brasileiro tem imperfeições as quais temos que corrigir. Algo necessário é impor limites para gasto de campanha e criar óbices para doação de pessoas jurídicas e teto para a doação individual. Em 1946, deu-se a primeira eleição no Brasil na qual mais de 10% da população votou. Veja-se a legitimidade da Constituição de 1946. Já em 1988, a legitimidade da Constituição é um reflexo da legitimidade da Assembleia Nacional Constituinte. Cerca de 60% da população brasileira votou nos constituintes. Deu-se um salto, em 40 anos, de cerca de 50 pontos percentuais. É um salto magnífico. Isso gerou uma diferença no retrato da Constituição. Mas, quando se amplia a base de eleitores, o capital tenta fazer frente a esse grande número de pessoas que entraram no sistema eleitoral. Há 50 anos esses atores não foram admitidos a entrar em cena.
Basta lembrar que somente após 1988 é que os analfabetos tiveram o direito ao voto. Para a democracia eles não existiam. Hoje você tem uma ampla base eleitoral, com um povo que está se acostumando a ir às urnas. Eu entendo que é o povo quem tem capacidade para discernir politicamente o que é melhor para o país. Acho um absurdo um certo senso comum que considera que alguns votem de modo pior do que outros, no sentido de entender que as pessoas mais simples, com menos estudo ou acesso aos meios de informação sejam manipuláveis e outras não. O único momento no qual somos materialmente iguais é o solitário instante no qual votamos. Ninguém veste a mesma marca de roupa, calça o mesmo tipo de sapato, anda no mesmo carro ou no mesmo ônibus. O único momento em que todos sãos iguais é no ato de votar. Quando há a ampliação do universo de votantes e sua participação se dissemina no processo político, o capital imediatamente lança mão de instrumentos para tentar captar essa nova expressão da vontade do povo. Daí as campanhas serem a cada eleição muito mais caras. O Brasil não é diferente do resto do mundo. Em toda parte estão discutindo esse problema. A Suprema Corte dos EUA derrubou nesta última semana o limite de doação individual para partidos e campanhas eleitorais.
ConJur — O senhor traça paralelos entre o Poder Moderador do imperador, da Constituição de 1824, e a atuação do Judiciário atualmente, dizendo que a Justiça, principalmente o STF, exerce agora o Poder Moderador. O Judiciário, porém, só atua mediante provocação, diferentemente do monarca. O que isso muda no Poder Moderador? Torna-o mais democrático?
Dias Toffoli — Torna a moderação mais democrática, na medida em que não é algo discricionário, da vontade do detentor do Poder Moderador. E quem são os legitimados para provocá-lo? Os que têm uma densidade de representação e de responsabilidade social, econômica e política, tais como os órgãos de representação de classe, os partidos políticos, o próprio Parlamento, o presidente da República ou o Ministério Público, entre outros. É importante lembrar também que, no Império, o poder moderador manifestava-se principalmente na manutenção do equilíbrio entre as forças políticas no Parlamento, com a queda de gabinetes e sua formação. Não havia ocorrido, como se deu após 1988, um deslocamento da gravidade do poder para o campo da solução jurídica dos conflitos.
É clássico o exemplo da rejeição do nome do deputado geral José de Alencar para o Senado do Império, mesmo tendo sido o mais votado na lista. O imperador justificou seu ato, típica expressão do Poder Moderador, ao dizer que não poderia aniquilar a oposição na província do Ceará nomeando um terceiro senador (cargo vitalício) da mesma facção política.
ConJur — O senhor também aponta que esse Poder serve à manutenção do status quo. Essa manutenção, na sua visão, é sempre boa?
Dias Toffoli — Não. Alguns críticos do Poder Moderador, ao fazer a leitura de Montesquieu, de Hamilton, dos federalistas, entenderam-no como um contrapoder em sua formulação original. É o que hoje se convencionou chamar de poder contramajoritário. Não se trata de um poder contramajoritário. O Poder Moderador não tem necessariamente de se associar a essa leitura que o define como uma exteriorização do conservadorismo ou de um viés contramajoritário. O STF, muitas vezes, será qualificado como conservador ou progressista será criticado ou aplaudido a depender do lado em que está o observador, que se comporta mais como um torcedor do que como um analista isento. O lugar do observador, na torcida ou na arquibancada, ditará a forma como ele qualifica a atuação do STF nos casos que são julgados. Para se mensurar isso, basta pesquisar quantas ADIs no governo FHC foram julgadas procedentes no Supremo e quantas, no governo Lula, foram rejeitadas.
Muitos críticos dizem que esse é um poder conservador, criado para impedir mudanças. Mas, permanecer no assembleísmo sem limites levou ao Nazismo na Alemanha e à queda da França, em 1940, dilacerada que estava com a paralisia do Parlamento. São necessários padrões e parâmetros para se delimitar os excessos das maiorias, isso é evidente. Mas, muitos caem na tentação do puritanismo ou do moralismo. E não há nada mais dialético do que esse processo. Nunca se vai ter uma posição permanentemente centralista ou federalista. Não há alguém que sempre vote pela Fazenda e nunca pelo setor privado.
ConJur — O senhor é a favor do foro por prerrogativa de função?
Dias Toffoli — Sim. Vivemos em um Estado Federal. Como colocar uma autoridade da nação para ser julgada pelo tribunal local? Não tem sentido.
ConJur — O não desmembramento da Ação Penal 470 mexeu com esse debate. Existe alguma fórmula para isso?
Dias Toffoli — Simples: nós passamos a admitir o desmembramento. Justiça seja feita, o próprio ministro Joaquim Barbosa, na Ação Penal 470, votou pelo desmembramento, e ficou vencido.
ConJur — A competência originária do Supremo deve ser reduzida? Dias Toffoli — Dou conta do meu trabalho. Cheguei ao gabinete com 12 mil processos, já recebi cerca de mais 30 mil, ou seja, foram por volta de 40 mil processos, e tenho, atualmente, 3 mil processos no gabinete e 5 mil a mim distribuídos. Destes, só mil com a competência originária. Hoje sou o que tem menos processos originários pendentes. São 4 anos e meio de corte. É possível dar conta do recado. É necessário ter disposição para trabalhar e tentar, com humildade e perseverança, imprimir uma gestão adequada ao gabinete.
Fonte- Conjur- http://www.conjur.com.br/2014-abr-07/pais-nao-quebrara-stf-julgar-favor-poupadores-toffoli