Lentidão do Judiciário, competição reduzida entre os bancos e até aversão de juízes a juros altos estão entre as causas da resistência das altas taxas de empréstimos bancários no Brasil, segundo estudos que têm esmiuçado o tema.
Essas pesquisas tentam explicar, com abordagens diferentes, por que uma série de regulações que buscou diminuir o risco em transações de crédito no país teve efeito relativamente limitado sobre a redução dos juros cobrados nos financiamentos.
Parte importante do spread bancário (diferença entre o que os bancos pagam para captar recursos e o que cobram em seus financiamentos) é explicada pelo risco de calote. Quando ele é elevado, as instituições se protegem de prováveis perdas cobrando mais caro para emprestar.
Em termos desse arcabouço de proteção ao credor, o Brasil —que hoje debate seu status de um dos maiores spreads do mundo— não é o mesmo país imprevisível de 20 anos atrás.
Desde o início dos anos 2000, mudanças introduzidas pela Lei de Falências, novas regras do crédito consignado e da alienação fiduciária, entre outras, buscaram aumentar as garantias das instituições financeiras em operações de crédito.
As medidas tomadas no Brasil surtiram alguns efeitos.
Em 2004, os bancos recuperavam pífios 0,2% de empréstimos com garantias dados a empresas que entrassem em processos de falência ou recuperação judicial, segundo dados do Banco Mundial. Em 2007, dois anos após a aprovação da Lei de Falências, a taxa chegou a 12,1%.
Mas esse patamar permanece muito baixo em comparação ao resto do mundo.
Os economistas Jacopo Ponticelli (da Kellogg School of Management) e Leonardo Alencar (do Banco Central do Brasil) ressaltam em um estudo que, com a nova legislação de falências, a proteção aos direitos do credor brasileiro passou a não diferir muito da americana.
As instituições financeiras que atuam nos Estados Unidos, porém, conseguem reaver 82% do que lhes é devido em recuperações judiciais.
A taxa de 12,4% do Brasil em 2018 só perdia para a de dez entre 189 cidades e países, alguns deles em situação de calamidade, como Venezuela (5,6%) e Síria (10,8%).
Além de baixo, o valor recuperado pelos credores brasileiros só é retomado após quatro anos, um dos períodos mais longos entre as nações e metrópoles pesquisadas pelo Banco Mundial.
O estudo de Ponticelli e Alencar aponta a morosidade do Judiciário como uma das causas da eficácia reduzida da regulação bancária.
No trabalho, publicado no Quarterly Journal of Economics (um dos periódicos mais respeitados em economia), os autores analisaram o efeito da Lei de Falências no Rio Grande do Sul, que oferecia uma detalhada base de dados dos casos.
Sua conclusão foi que, nas comarcas mais ágeis —com menor acúmulo de processos por juiz—, a nova regulação surtiu efeito muito maior, levando a aumento tanto na concessão de empréstimos para a indústria quanto nos investimentos das empresas do setor.
“Para serem eficazes, essas reformas precisam de execução adequada e tempestiva pelos tribunais”, diz o estudo.
Embora concorde que a baixa efetividade do Judiciário para fazer valer contratos de crédito inadimplentes contribua para os spreads altos, outro estudo sugere que a interpretação reversa também pode ser verdadeira. Ou seja, os próprios spreads altos condicionariam as decisões dos juízes brasileiros.
Segundo Bruno Salama (da Fundação Getulio Vargas e da Universidade da Califórnia, Berkeley), autor da pesquisa, isso não significa que as cortes brasileiras tenham uma preferência pró-devedor. O viés dos magistrados, diz ele, seria contra taxas de juros acima de certo patamar.
“Por exemplo, o juiz está mais propenso a mandar pagar rigorosamente o que está previsto em contrato quando a taxa de juros estipulada é de 12% ao ano do que quando é de 12% ao mês.”
Para investigar essa possibilidade de “causalidade reversa”, Salama vasculhou 11.000 ações referentes a financiamentos de automóveis em São Paulo com auxílio de um software que identificou palavras-chave em decisões de primeira instância.
Terminou com 888 casos que atendiam a certos critérios da pesquisa (como ter o devedor como autor da ação e a taxa de juros explícita na sentença judicial).
A maioria das disputas se referia a contratos com juros inferiores a 3% ao mês. Todas essas foram rejeitadas pelos juízes que, portanto, deram ganho aos credores. Com a minoria dos casos em que as taxas questionadas superavam 7% ao mês, ocorreu o oposto e os pleitos dos devedores foram todos aceitos.
Para Salama, os spreads altos contribuem para que o Judiciário siga relativamente avesso a dar cumprimento aos contratos de financiamento em condições de juros muito elevados: “Existe profunda incerteza acerca principalmente da taxa de juros aceitável”, afirma ele, destacando que isso “não exime o Judiciário da sua parcela de culpa”.
“O Judiciário tem sido incapaz de dar respostas unívocas e minimamente rápidas”, diz.
Agora ele vai ampliar seu estudo para buscar eliminar hipóteses alternativas para sua descoberta, como a possibilidade de que os contratos com juros mais altos contenham algum tipo de irregularidade.
Caso confirme sua conclusão inicial de que existe mesmo um viés entre os juízes contra juros altos, Salama tentará medir o peso disso sobre o spread bancário.
MAGISTRADOS NEGAM INFLUÊNCIA DE DECISÕES SOBRE TAXAS BANCÁRIAS
A dificuldade de se mensurar a contribuição individual exata das muitas causas do alto spread no Brasil torna o debate intrincado, terreno fértil para divergências.
Representantes dos juízes discordam, por exemplo, que a morosidade na tramitação de ações na Justiça referentes a dívidas e possíveis tendências enviesadas de interpretação da lei ainda tenham peso significativo sobre o risco de crédito no país.
“A legislação avançou em favor dos bancos de forma extremamente benevolente”, afirma José Arimatéa Neves Costa, vice-presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros).
Segundo Costa, que é juiz titular de uma vara de direito bancário em Cuiabá, os entendimentos em relação a questões do sistema financeiro foram “tabelados” pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).
“O juiz de primeiro grau evita decidir favoravelmente ao consumidor, ainda que se sensibilize com sua situação, porque sabe que vai criar uma expectativa que não se sustenta em recursos posteriores”, explica.
Costa afirma ainda que, com as mudanças na legislação, a morosidade deixou de ser um problema na tramitação de processos em que haja garantias reais, como imóveis e veículos.
A exceção, diz ele, continuam sendo as execuções de dívidas sem colateral nas quais o juiz “tem realmente dificuldade de fazer o processo avançar”. “Mas, de forma geral, a lógica do argumento bancário para manter os juros altos não se sustenta”, diz Costa.
CONCENTRAÇÃO NO SETOR IMPEDE CORTE MAIS ACENTUADO DE JUROS
Os bancos, por sua vez, negam que a alta concentração bancária —citada por especialistas como uma das causas da resiliência dos juros de financiamentos— também seja parte relevante do problema.
Em recente audiência pública no Senado, Murilo Portugal, presidente da Febraban (federação de bancos), ressaltou que os altos custos da intermediação financeira —o que inclui o risco de crédito— são o principal determinante do spread.
“Não é a concentração bancária, não é a falta de competição, não são os supostos lucros abusivos dos bancos”, afirmou Portugal.
Um outro estudo, e ainda inédito, indica, porém, que, no Brasil, a alta concentração —os cinco maiores bancos detêm mais de 80% dos ativos do setor— tem se traduzido em menor concorrência e reduzido o efeito potencial das mudanças regulatórias.
A conclusão dos economistas Klenio Barbosa (Insper), Rodrigo Andrade (BC) e Leonardo Alencar (BC) se baseia em análise dos efeitos da Lei de Falências.
Segundo eles, a nova regulação levou os juros médios do crédito corporativo a cair de 36% para 31,3%, o que é positivo. Mas, pelos cálculos dos pesquisadores, se a lei tivesse surtido todo o seu efeito potencial, as taxas teriam recuado ainda mais, para 29%.
“Essa diferença de pouco mais de 2% entre o efeito potencial e o real mostra que há um problema moderado de competição no país”, diz.
A pesquisa —que será publicada em breve— envolveu a comparação do comportamento de diferentes linhas de crédito, algumas afetadas pela Lei de Falências e outras não.
Os três economistas dizem acreditar terem comprovado na prática o que prevê a teoria: credores com algum poder de mercado podem não transferir para os tomadores de recursos todos os benefícios da maior proteção advinda de novas regulações.
“Mesmo que o Judiciário seja mais eficiente ou tome decisões sem vieses, a eficácia de uma maior proteção aos credores também depende do nível de competição”, afirma Barbosa.
Fonte- Folha de São Paulo- 14/5/2018-
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/juros-altos-levam-juizes-a-dar-mais-ganho-de-causa-a-devedores.shtml