Em consequência da excessiva judicialização das relações pessoais e econômicas, o Poder Judiciário vivencia uma crescente demanda, o que tem afetado a ordem jurídica e abarrotado os tribunais brasileiros. Em relação à Justiça do Trabalho, essa situação não é diferente. Cada dia mais os esforços têm se multiplicado para dar solução a uma avalanche de ações trabalhistas. Com isso, o próprio Tribunal Superior do Trabalho tem encontrado dificuldades para garantir a ordem jurídico-trabalhista por meio de sua jurisprudência. Uma solução encontrada veio através da Lei nº 13.015 de 2014, que instituiu a obrigatoriedade da uniformização de jurisprudência pelos tribunais regionais. Para falar sobre as consequências desse novo procedimento, o Hora Extra conversou com o desembargador do trabalho Eugênio Cesário, do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região. Veja a íntegra da entrevista veiculada no programa 291 no dia 10 de outubro na TV Justiça.
Toda a Justiça do Trabalho está sobrecarregada, mas o estrangulamento da justiça especializada pode ser melhor observado no TST. Por quê?
Vamos tentar contextualizar a questão para sermos melhor compreendidos. Acontece que o cidadão brasileiro tem a ideia de um Judiciário em quatro instâncias. Ele acredita que ele entra com uma ação na Vara e pode recorrer pela causa dele até o Supremo Tribunal Federal. Isso não é realidade. Nós temos um Judiciário estruturado em duas instâncias claramente: a ordinária, que cuida da causa do cidadão, que compreende o primeiro grau e o segundo graus de jurisdição, a vara e o tribunal, e uma instância extraordinária, que julga normas, que julga a própria ordem jurídica e o acerto dos tribunais. E na Justiça do Trabalho quem cumpre esse papel é o Tribunal Superior do Trabalho, que é o tribunal único com a obrigação de acender um farol de jurisprudência e de validade dos decretos e das decisões dos tribunais regionais. Ele faz isso ditando a sua súmula de jurisprudência.
E acontece que o TST, um tribunal uno nessa missão grandiosa, no ano passado recebeu mais de 300 mil processos. Por que isso ocorre? A pergunta que se faz obviamente é essa. O que ocorre é que os tribunais regionais, em regra, não vêm seguindo a jurisprudência do TST e, na medida em que não seguem a jurisprudência do TST, a parte se vê no direito e até na obrigação de recorrer até o TST pra ver aquilo que ela tem como expectativa de direito assegurada. Esse é o problema, o que faz sobrecarregar o TST em grande parte, além das outras mazelas que a ordem jurídica brasileira tem, como o fato de que os regionais, lamentavelmente, não acompanham a jurisprudência do TST sempre. É claro que nós estamos falando de uma Justiça com números grandes, mas 300 mil processos por ano não permitem ao TST que ele cumpra a sua função primeira, que é de julgar as teses jurídicas e acenar com a jurisprudência correspondente.
E justamente para tentar resolver essa questão, e projeto do próprio TST, foi aprovada a Lei nº 13.015/2014. Qual a intenção do TST com a aprovação dessa lei? Ela é constitucional na sua opinião?
Primeiro temos que registrar que alguma coisa deveria ser feita e o TST foi o autor do projeto de lei que passou no Congresso Nacional transformando-se na Lei 13.015/14, que exatamente moderniza os instrumentos de uniformização de jurisprudência na Justiça do Trabalho. Para os regionais a norma cria, de forma bem peculiar, bem própria ao processo do trabalho, o incidente de uniformização de jurisprudência regional. Essa lei tem, portanto, uma finalidade relevante, mas, a meu ver, nós vamos ter que trabalhá-la melhor, interpretá-la melhor, para que não a percamos por essa alegação de inconstitucionalidade.
Em seu artigo, que foi publicado recentemente no portal da Amatra18, o senhor afirma que a lei gerou distorções. Quais seriam elas?
São claramente duas as distorções que a Lei 13.015/14 trouxe, especialmente o ato que a regulamentou que é o ato 491 do TST, e que ditou regra para as reformas regimentais nos tribunais regionais. Uma delas é a vinculação direta da jurisprudência do TST aos regionais. Quer dizer, não só criou uma súmula de jurisprudência vinculante do TST para os regionais como ainda mais, determinou que os regionais, mesmo tendo julgado a questão, julguem de novo para adequar a essa súmula do TST. Então, temos dois problemas graves porque a Emenda Constitucional 45 só estabeleceu efeito vinculante para uma súmula específica do Supremo. Naquela ocasião, os tribunais superiores, tanto o TST, quanto o STJ e o TSE, pretenderam também criar as suas súmulas vinculantes e o projeto da EC 45 pretendia assim. No entanto, isso não passou no Congresso Nacional. O Congresso Nacional, investido em sua competência constitucional, só aprovou a súmula vinculante para o Supremo e nos casos de controle aberto de constitucionalidade. Esse é o primeiro viés de dificuldade que a lei traz.
No caso, a lei exige que os tribunais instalem o incidente de uniformização de jurisprudência. Qual é o motivo dessa exigência?
Por causa do que nós falávamos, ao apresentar o problema que o TST tentou resolver com a Lei 13.015/14, antecipando-se inclusive ao novo Código de Processo Civil, que entra em vigor em 2016, e que tem seus instrumentos próprios, similares a esse. Portanto, a questão é o excesso de recursos, a verdadeira babel jurisprudencial que estava existindo, cada regional com a sua linha de jurisprudência e o TST recebendo recursos e mais recursos. Essa foi a razão da lei.
Em que situações, atualmente, é possível a admissão do recurso de revista?
Eis a questão. A Lei 13.015/14 não extinguiu o recurso de revista. O TST continua existindo, o recurso de revista continua existindo. A interpretação que está se dando a ela leva a esse equívoco: não pode mais haver recurso de revista. Se nós não adotarmos uma tese consentânea com o TST, nós não podemos adotar nenhuma. Temos que adotar a tese que o TST disse que deve ser adotada e é aí, em face dessa tese é que é feita a análise de admissão do recurso de revista. Ora, se a tese que o tribunal regional adota é igual à do TST o recurso de revista perde o objeto. Então ele não sobe, não há razão dele existir. O que leva a ser questionado o seguinte: então nós temos sempre que julgar vinculativamente ao que diz o TST? É a partir daí que eu entendo que esse viés interpretativo radical é equivocado.
Até então, antes de ler o seu artigo, eu acreditava que a tese do tribunal sendo discordante do TST, a parte poderia recorrer, entrar com recurso de revista para ser recebido e reanalisado o processo pelo TST. Mas me parece que, conforme a sua análise a respeito do Ato nº 491 do TST, se for discordante a tese dos TRTs, esse regional que discordar tem que adaptar a sua jurisprudência à do TST, é isso mesmo?
É isso mesmo. É essa a leitura que tem sido feita e ela tem evidentes distorções porque a lei não extinguiu o recurso de revista. O que a lei fez foi esvaziar o recurso de revista tentando aliar a jurisprudência regional com a jurisprudência nacional. Enfim, permitindo ao TST que cumpra o seu papel de órgão responsável pela uniformização do direito do trabalho no Brasil. O que ocorre é que se o tribunal regional julga um incidente de uniformização de jurisprudência e estabelece uma súmula ou uma tese jurídica prevalecente, porque quando não dá súmula provavelmente dará uma tese jurídica prevalecente, e essa tese está alinhada com o TST (aliás, isso é um requisito da lei: a tese jurídica prevalecente não pode destoar da jurisprudência do TST para ser adotada), é claro que no recurso de revista apresentado ali o tribunal julgou ou vai julgar de acordo com a tese adotada. A questão é: pode o julgador, não mais o tribunal no incidente porque, observe, o tribunal já adotou a tese. Então: pode o julgador, o órgão fracionário, a turma do tribunal, julgar diferentemente daquela tese adotada? E o que se diz hoje é que não. Esse é o problema que nós estamos enfrentando porque o ato diz que o julgamento feito e contrário à súmula adotada deve ser adequado a ela. Então, na prática, como isso está sendo feito: estão sendo devolvidos para o órgão julgador o processo que ele já julgou e que ficou contrário à tese do TST e a que o regional se alinhou. E aí o processo vem para o órgão julgador adequar, o que na verdade, na prática, não é um julgamento, mas é um ato administrativo vinculado. Ele vai fazer alguma coisa, que é da sua competência com a finalidade e com o conteúdo que o TST já determinou.
Ou seja, as decisões do TST passam a ser vinculantes.
Vinculantes e obrigam a um ato chamado de adequação que seria um novo julgamento e que, na verdade, de julgamento não tem nada, porque não há essência jurisdicional nele, e isso contraria toda a ordem jurídica que nós conhecemos. O artigo 471 do CPC vigente, por exemplo, diz que nenhum juiz julgará a mesma lide, que é um princípio da estabilidade da jurisdição. Esses são os problemas que confrontamos. O que está errado é essa força de restrição com que a medida veio. O problema é tão grave que se tentou mesmo, de uma vez por todas, criar uma disciplina e isso foi feito de uma maneira contundente. Então, a dificuldade está no excesso, porque a própria lei diz claramente que, mantendo-se a decisão, faz-se a admissibilidade então do recurso de revista. E até agora nós não conseguimos chegar lá. Não há mais recurso de revista.
E qual o posicionamento do TRT18?
O nosso TRT procura ser mais fiel, mais técnico, seguir melhor a jurisprudência do TST. Basicamente, a nossa jurisprudência é alinhada com a do TST. Porém, nem sempre. Em princípio, o nosso presidente apresentou uma emenda, nós aprovamos no Pleno uma reforma do Regimento Interno do Tribunal, estabelecendo essa adequação ao que já foi julgado, à tese nova, que é algo estranho no mundo jurídico. O fato é que eu tenho realmente manifestado a minha preocupação, escrevi a respeito, porque me parece claro que esse exagero traz um erro evidente que nós não podemos cometer. Não convém a um judiciário tão especializado, tão técnico, aliás a juiz nenhum cometer esse erro de julgar novamente a mesma lide.
Quais as consequências a se adotar, a se dar continuidade a esse procedimento para o jurisdicionado, para a sociedade?
Para a sociedade, para o jurisdicionado, parece que como estava não poderia continuar. Isso é claro. A sociedade requer proteção, segurança. O grande princípio da proteção não abrange somente o trabalhador ou o vulnerável na relação de consumo, ou o meio ambiente. Ele atua, no primeiro momento, na proteção da própria ordem jurídica para que os cidadãos tenham segurança do que essa ordem jurídica diz e não se vejam diante de uma situação que conforme o juiz, ou a Turma – se mais liberal ou mais conservador – minha causa é procedente ou não. Porque, na verdade nós estávamos caminhando pra isso de uma maneira bem grave e o remédio encontrado foi esse que está na Lei nº 13.015/14. A dosagem com que esse remédio vem sendo aplicado, é que, a meu ver, corre o risco de jogar todo esse esforço por terra, de resultar num prejuízo maior ainda, porque grandes advogados saberão explorar isso. O que se está plantando aí são nulidades processuais.
Publicado em 14/01/2016.