A aplicação da dação em pagamento para solucionar dívidas tributárias sempre foi controvertida no mundo jurídico. Pela falta de previsão original no Código Tributário Nacional (CTN) a doutrina se debruçou para discutir seu cabimento, sobretudo em razão das previsões do CTN quanto a exaustão das formas de extinção do crédito. De outro ponto de vista, argumentava-se sobre a capacidade dos entes federativos em suplementar as normas gerais num país que cada vez mais aflorava o senso federativo.
Parte da polêmica adveio da própria atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre tal possibilidade, sendo famoso o debate entre duas ações diretas de inconstitucionalidade que apreciavam lei do Distrito Federal de 1997 (ADI 1.917) e um diploma do Rio Grande do Sul de 2000 (ADI 2.405), ambas normas prevendo a dação de bens móveis.
Numa primeira análise sobre a lei distrital, o STF suspendeu cautelarmente, em 1998, a lei adotando a tese da taxatividade do CTN quanto às formas de extinção do crédito. Mas já no fim de 2002, explicitamente reconhecendo a mudança de orientação, declara, também em cautelar, válida a lei gaúcha reconhecendo a “possibilidade do Estado-membro estabelecer regras específicas de quitação de seus próprios créditos tributários”. Numa nova virada, ao julgar o mérito da ADI 1917 o plenário declara em 2007 a inconstitucionalidade da norma, não por argumentos tributários, mas sim por vício em relação ao princípio da licitação.
A verdade é que o emprego da dação em pagamento para fins tributários é incerto e de futuro desconhecido
Tangenciando os aspectos tributários, restou reconhecido o argumento da licitação como impeditivo. Novo capítulo do STF sobre o tema até está em vias de ocorrer, já que houve pedido para inclusão em pauta do julgamento de mérito da ADI sobre a lei gaúcha, mas, até o presente, não se tem novidades sobre esta.
Para muitos, a L.C. nº 104/2001 veio, de certa forma, resolver tal aspecto de insegurança jurídica, modificando a redação original do CTN para expressamente incluir a dação como uma das formas de extinção do crédito. Para tantos outros, veio a modificação para colocar um ponto final na aplicação do instituto na medida em que expressamente admitia apenas a dação de bens imóveis. Esta síntese já demonstra a dificuldade de compreender os padrões de utilização.
Mas, novos temperos foram adicionados. Respeitando o CTN, a União editou a Lei 13.259/2016, reconhecendo que crédito inscrito em dívida ativa da União poderá ser extinto mediante dação de imóveis. Seguido por Medida Provisória, ganhou redação diferente, para constar que a recepção dos bens seria a critério do credor. Tal expressão, além das dúvidas semânticas, aflorou a percepção de como seria o instituto capaz de conjugar-se com o interesse público.
Neste ano identificou-se de que realmente o instituto veio para não funcionar. Considerando a previsão da lei que somente utilizado para créditos já inscritos em dívida ativa, a Procuradoria da Fazenda Nacional editou a Portaria PGFN nº 32 para estabelecer as condições de funcionamento. Além da fixação de requisitos para identificação do bem e de seu valor, destaca-se que não serão aceitos os imóveis de difícil alienação, inservíveis, ou que não atendam aos critérios de necessidade, utilidade e conveniência, a serem aferidos pela Administração.
Ora, é sabido que tais conceitos podem e devem ser aferidos em cima da hipótese concreta de subsunção. Contudo, igualmente é manifesto que esta identificação é difícil e que os servidores, mesmo bem-intencionados, terão muita imprecisão no peso daquelas qualidades nos casos concretos. Mais do que isto; observando os termos da referida portaria, a norma impõe que tal apreciação passe pelo crivo de diversos setores administrativos.
A unidade da PGFN deverá se manifestar sobre a conveniência e oportunidade da dação em pagamento do bem imóvel para a recuperação do crédito em dívida ativa e, na hipótese favorável, submeter o processo à apreciação da Coordenação de Estratégias de Recuperação de Crédito que encaminhará o processo à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), para verificação quanto à possibilidade de incorporação do imóvel ao patrimônio público.
Evidente que estas análises foram estabelecidas para retirar a subjetividade de análise daquelas qualidades tão indeterminadas. Pelo menos é a torcida dos mais otimistas. Para os realistas foi feito justamente para não funcionar. Na mente de pensamentos tortos poderiam ser utilizados para validar o ingresso de bens que, na prática, mostrem-se longe de qualquer necessidade, utilidade ou convenientes ou de imóveis. Certo é que os órgãos de controle deverão estar mais do que atentos para conhecer de tais situações e avançar para as hipóteses reais de aplicação.
A verdade é, seja pela aplicação no mundo real destas novas normas federais, seja por eventual decisão diferente do STF, o emprego da dação em pagamento para fins tributários ainda é incerto e de futuro desconhecido de todos. O que se tem de certo é a insegurança jurídica sobre a sua efetiva compreensão, os limites de sua aplicação ou se contribuirá como real elemento nas relações no sistema tributário.
Irapuã Beltrão é doutor em direito e professor de direito tributário
Fonte: Valor Econômico- 7/8/2018-