Em 22 de agosto de 2018, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por maioria, uniformizar o entendimento das 5ª e 6ª Turmas acerca da interpretação da aplicabilidade do disposto no art. 2º, II, segunda figura, da Lei 8.137/90, aos casos de ICMS declarado e não pago (HC 399.109).
Trata-se de casos nos quais o contribuinte de ICMS declara ao Fisco a ocorrência do fato imponível em todos os seus elementos, efetua regularmente o autolançamento, e deixa, contudo, de pagar o tributo apurado na data estabelecida em lei. A questão central é a de que, como o custo do tributo pode ser embutido no preço da mercadoria (ou do serviço, já que o ICMS não se limita apenas à venda de mercadorias), recebido o pagamento da mercadoria, o não recolhimento posterior do valor apurado no autolançamento configuraria a prática do crime de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Essa não é uma questão nova e já tinha sido devidamente examinada quando da promulgação da Lei 8.137/90, com importantes manifestações contra o caráter criminoso da mera inadimplência, seja na doutrina, seja na jurisprudência. Nova – e surpreendente – foi sua ressureição em anos recentes pelas mãos de órgãos de persecução penal estaduais, e que culmina, agora, com uma tomada de postura de Corte Superior diametralmente oposta ao entendimento majoritário antes consolidado.
O acórdão ainda não foi publicado, mas o voto do relator, seguido pela maioria da 3ª Seção, já circulou e, dentre os diversos argumentos empregados na fundamentação, destaco, por questão de espaço, o da fusão entre o tipo penal do art. 2º, II, Lei 8.137/90 e o do art. 168, CP (apropriação indébita).
A ocorrência de um fato gerador não tem por efeito expropriar o contribuinte da quantia devida a título de tributo
O argumento é o de que parte da jurisprudência e da doutrina teriam “atribuído” uma rubrica de “apropriação indébita tributária” ao crime do art. 2º, II, “assemelhando-o” ao crime do art. 168, CP, do que decorreria a “imposição” de incluir naquele elementares típicas deste. Além de a criação doutrinária e jurisprudencial de uma nova figura penal a partir da fusão de elementares de normas incriminadoras em vigor ser de duvidosa constitucionalidade (princípio da legalidade), a situação daquele que deve tributo como contribuinte e a daquele que se apropria de coisa alheia móvel de que tem a posse são essencialmente diversas.
A ocorrência do fato imponível (venda da mercadoria, prestação do serviço etc.) cria uma obrigação jurídica pecuniária para o contribuinte, que é a obrigação de entregar ao Fisco determinada quantia em dinheiro, obrigação de dar, portanto. Não há uma imediata “perda” da quantia correspondente do patrimônio do contribuinte em benefício do Fisco. Por essa razão, a ocorrência do fato imponível não torna automaticamente “alheia” a quantia devida pelo contribuinte, apenas cria para ele a obrigação de entregar ao Fisco uma quantia que é sua. A ocorrência de um fato gerador não tem por efeito expropriar o contribuinte da quantia devida a título de tributo. As consequências do entendimento contrário, aliás, se aplicariam a quaisquer tributos e não creio que a Corte esteja disposta a levar um tal entendimento às suas últimas consequências. Pois bem, se esse valor não é alheio, mas próprio, como assemelhar o não pagamento à apropriação de coisa alheia?
O voto condutor sugere que essa assimilação se daria não na relação do contribuinte de ICMS com o Fisco, mas, sim, naquela estabelecida pelo contrato de compra e venda entre o contribuinte do ICMS e o consumidor final. Como o custo econômico do ICMS poder ser embutido no preço da mercadoria vendida – tanto quanto podem o ser o custo de outros tantos tributos e despesas operacionais de qualquer atividade econômica -, quando o consumidor paga efetivamente pela mercadoria, a parcela correspondente ao tributo embutido no preço não pertenceria ao vendedor: seria “alheia”, apesar de o pagamento da mercadoria, com a tradição do dinheiro (bem fungível), ter transferido a propriedade do valor correspondente ao tributo ao vendedor.
Mas, então, agravam-se os problemas porque ou a parcela que representa o custo do tributo e que é dada pelo consumidor em pagamento pelo bem não pertence ao vendedor, mas ao comprador, caso em que a vítima da apropriação indébita seria o consumidor e não o Fisco; ou a quantia é devida pelo consumidor ao Fisco e sua entrega ao vendedor é feita apenas para que a transmita a terceiro (o Fisco) por ordem do consumidor (dominus), caso em que seria necessário não só apontar que tributo é este devido pelo consumidor pela compra de mercadorias, como, ainda, superar o óbice acima exposto de que a ocorrência do fato gerador cria uma obrigação de dar dinheiro, não a perda de parcela do patrimônio do contribuinte em benefício do Fisco.
Heloisa Estellita é professora de Direito Penal da FGV DIREITO SP e consultora
Fonte: Valor Econômico- 29/8/2018-