A identificação de beneficiários finais de pessoas jurídicas e de arranjos legais, especialmente os localizados fora do país, tem se revelado um importante desafio para a prevenção e combate à sonegação fiscal, à corrupção e à lavagem de dinheiro em âmbito mundial.
Entende-se o beneficiário final como a pessoa natural que, em última instância, de forma direta ou indireta, possui, controla ou influencia significativamente uma determinada entidade. Nesse sentido, o conhecimento desse relacionamento por parte da administração tributária e aduaneira, bem como pelas demais autoridades de fiscalização, controle e de persecução penal, é fundamental para a devida responsabilização e penalização de comportamentos a margem das leis.
Sem embargo, empresas offshores têm sido apontadas, em recentes investigações de lavagem de dinheiro, corrupção e blindagem patrimonial, como meio de ocultação da origem ilícita de capitais remetidos ilegalmente, ou mesmo para o recebimento de valores relativos a atos ilícitos praticados no país. As jurisdições onde frequentemente estão sediadas favorecem sobremaneira a ocultação do real proprietário dos bens e valores movimentados. Da mesma forma, a existência de empresas com ações ao portador, e de arranjos legais tais como os “trusts”1 permite tal ocultação. Nesses casos, o anonimato é a garantia da impunidade. A falta de informações quanto ao real beneficiário dessas pessoas jurídicas impossibilita a responsabilidade penal ou fiscal dessa pessoa natural. Como efeito colateral, a falta de informação acaba de certa forma colocando sob um mesmo prisma empresas legitimamente constituídas para fins lícitos, e estas eminentemente criadas para a consecução de atos ilícitos.
O tema tem sido intensamente debatido nos fóruns internacionais tributários, de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, e de transparência. O Grupo de Ação Financeira Internacional – GAFI, organismo internacional vinculado à OCDE, responsável pela definição dos padrões internacionais, legais e operacionais, para a prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo, define, em suas recomendações 24 e 25, a necessidade de que os países tomem medidas no sentido de dar-se ampla transparência e acesso tempestivo à informação relativa aos beneficiários finais das pessoas jurídicas e de demais arranjos legais2. Em outubro de 2014, o organismo publicou o “FTAF Guidance – Transparency and Beneficial Ownership”, compreensivo guia para auxiliar os países na implementação das citadas recomendações.
Na mesma linha, outros organismos internacionais estão promovendo ações concretas para promover a transparência dos chamados veículos corporativos. Em 2013, os países do G83 endossaram os princípios fundamentais sobre beneficiários finais, em consonância com os padrões do GAFI. Em novembro de 2014, o G204 aprovou dez princípios de alto nível5 a serem observados por seus membros, definindo o tema como de alta prioridade. Dessa forma, o G20 deixou expressa publicamente a necessidade de os países abordarem os riscos causados pela falta de transparência em veículos corporativos, e os benefícios na adoção dos princípios no que se refere ao combate aos crimes tributários e à corrupção.
Consistente com essa tendência, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – Enccla6 tem se preocupado com a questão desde suas primeiras edições: pelo menos seis metas/ações abordaram o assunto de alguma forma, em 2004, 2005, 2007, 2010, 2014 e 2015. Pode-se considerar que sob o ponto de vista preventivo o país evoluiu no que foi possível, com uma regulamentação razoavelmente harmônica e consistente entre todos os reguladores, e bem avaliada pelo GAFI, a qual prevê que as instituições financeiras devem realizar diligências no sentido de conhecer seus clientes, identificando “a cadeia de participação societária, até alcançar a pessoa natural caracterizada como beneficiário final”7, bem como a necessidade de se conhecer os beneficiários finais das movimentações bancárias.
Há, no entanto, uma lacuna no que se refere ao acesso à informação por parte dos órgãos de fiscalização, repressão e persecução penal. Ao contrário do preconizado nas recomendações internacionais, o dado relativo aos efetivos controladores não está disponível de forma tempestiva a tais autoridades, sendo necessárias diversas diligências, inclusive em âmbito internacional, para se buscar a obtenção da informação, nem sempre com sucesso.
A Instrução normativa que entra em vigor na próxima semana irá suprir essa lacuna. Fruto das discussões da Enccla relativas a ações dos últimos dois anos, com a participação de órgãos como Banco Central, CVM, é resultado de amplo debate. A partir de sua edição, a Secretaria da Receita Federal do Brasil passa a exigir a identificação do beneficiário final das empresas nacionais e estrangeiras que vierem de alguma forma operar no país. Tal informação passa a fazer parte do cadastro nacional das pessoas jurídicas, ficando disponível para a administração tributária e aduaneira e também para as demais autoridades, mediante convênio de troca de informações.
Dá-se com isso importante passo no sentido de aumento da efetividade no combate à evasão fiscal, à corrupção e à lavagem de dinheiro, especialmente relativos a complexos esquemas criminosos, que hoje se utilizam da dificuldade no acesso a informação dos reais beneficiários para permanecer manter seus responsáveis nas sombras.
(1) Trusts são sociedades estrangeiras criadas através da transferência de um determinado patrimônio de uma pessoa, para outra pessoa chamada de Trustee (o administrador), visando que tais bens sejam administrados pelo Trustee em favor do depositante ou de outra pessoa por ele indicada (o beneficiário). FONTE: http://www.sociedadeinternacional.com/trust-definicao/
(2) “24. Transparência e propriedade de pessoas jurídicas* Os países deveriam adotar medidas para prevenir o uso indevido de pessoas jurídicas para a prática de lavagem de dinheiro e de financiamento de terrorismo. Deveriam também assegurar que haja informações adequadas, precisas e atualizadas a respeito da propriedade e do controle de pessoas jurídicas e que possam ser obtidas ou acessadas de maneira tempestiva pelas autoridades competentes. Em particular, os países onde haja pessoas jurídicas que possam emitir ações ao portador ou certificados de ações ao portador, ou que permitam acionistas ou diretores indicados, deveriam adotar medidas efetivas para garantir que não sejam usadas indevidamente para lavagem de dinheiro ou financiamento do terrorismo. Os países deveriam considerar medidas para facilitar o acesso a informações de propriedade e controle por instituições financeiras e APNFDs que sigam as obrigações definidas nas Recomendações 10 e 22.
25. Transparência e propriedade de outras estruturas jurídicas* Os países deveriam adotar medidas para prevenir o uso indevido de estruturas jurídicas para lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Em particular, deveriam assegurar que haja informações adequadas, precisas e atualizadas sobre os express trusts, inclusive informações sobre o instituidor, administrador e beneficiários, que possam ser obtidas ou acessadas de maneira tempestiva pelas autoridades competentes. Os países deveriam considerar medidas para facilitar o acesso a informações de propriedade e controle por instituições financeiras e APNFDs que sigam as obrigações definidas nas Recomendações 10 e 22.” FONTE: As Recomendações do GAFI
(3) Estados Unidos, Japão, Alemanha, Canadá, França, Itália, Reino Unido e Rússia.
(4) Grupo formado pelos ministros de finanças e pelos chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo (África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coréia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia), mais a União Européia. Representam 90% do PIB mundial e 2/3 da economia mundial. Fonte: http://www.g20.org/English/
(6) Instituída em 2003, com o objetivo de aprofundar a coordenação dos agentes governamentais envolvidos nas diversas etapas relacionadas à prevenção e ao combate aos crimes de lavagem de dinheiro e (a partir de 2007) de corrupção, a Enccla é coordenada pela Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, e, hoje, reúne cerca de 60 órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e do Ministério Público, tanto no âmbito federal quanto estadual, além do Ministério Público, bem como representantes da iniciativa privada.
(7) Carta Circular Banco Central nº 3461/2009
Fonte- Receita Federal- 28/4/2016- http://contabilidadenatv.blogspot.com.br/2016/04/receita-federal-passara-exigir.html