Hoje, convivemos com uma pluralidade de expressões que compõe uma nova realidade intensiva em tecnologias: aprendizado de máquina (machine learning), blockchain, criptomoedas, big data, internet das coisas, bots, dentre outras. Contudo, talvez ainda seja difícil dimensionar o impacto das transformações associadas a estas tecnologias no nosso dia-a-dia. O equilíbrio não é espontâneo ou intuitivo, mas sim construído.
Um exemplo interessante nesse contexto é o poupinha, robô criado pela startup brasileira Nama, que realiza agendamentos para emissão de documentos no âmbito do programa Poupatempo do governo do Estado de São Paulo. Tecnicamente, o poupinha é um chatbot (algoritmo de aprendizagem para troca de mensagens), desenhado para realizar atendimentos ao público e aprender com base nas interações com os usuários do serviço.
A partir desse caso, foi curioso notar a reação de alguns usuários ao longo dessa interação. Ao final do atendimento, 82 mil pessoas enviaram a seguinte mensagem de agradecimento ao poupinha: “Deus te abençoe”. Este número representa 23% do total de agendamentos feitos por meio do chatbot de janeiro a junho de 2017. Nestes casos, o chatbot foi tratado como qualquer outro atendente, demonstrando uma certa naturalização da interação homem-máquina, talvez menos evidente na rotina diária do cotidiano, mas bastante explorada pelas produções cinematográficas e séries de entretenimento.
Tarefas que se baseavam na experiência do advogado encontram ferramentas eletrônicas quantitativas para a sua realização
O filme Ela (Her), do diretor Spike Jonze, é um bom exemplo que nos ajuda a refletir sobre essa nova realidade, em construção, marcada pela crescente e difusa interação homem-máquina. No filme, o escritor Theodore encontra em uma máquina, capaz de aprender com os seus hábitos, gostos e desejos, uma companheira para ajudá-lo a lidar com suas angústias e frustações de relações passadas. E a história ali contada mostra como possíveis dilemas em torno da relação entre um sistema eletrônico e um indivíduo ultrapassam sentimentos de estranhamento diante da ausência de um corpo ou o receio de que máquinas possam adquirir consciência.
Entre entusiastas e pessimistas, esses exemplos nos incentivam a buscar um equilíbrio na compreensão dos impactos de novas tecnologias nas transformações sociais.
Desta relação, alguns desafios e questionamentos relacionados a diversas esferas da vida social se destacam, tais como: (i) quais tarefas são mais adequadas para máquinas? (ii) qual deve ser o equilíbrio entre a adesão a novas tecnologias e a criação de limites ao seu uso? (iii) como um indivíduo pode se preparar para dar conta de um ambiente intensivo em tecnologia?
No campo jurídico, esta interação caminha em ritmo acelerado em pelo menos dois campos: automação a partir de sistemas expert e aprendizado de máquina por meio de algoritmos. Contrariando a ideia de que estas tecnologias estariam em um futuro distante, já é possível observar o início da formação de um ecossistema de empresas nascentes, desenvolvedores, investidores, modelos de negócio e serviços no campo.
Processos de automação, como a elaboração de contratos e petições, por exemplo, já despertam interesse de escritórios de advocacia de diferentes portes e de grandes empresas. Startups como Looplex, Netlex e Linte, têm oferecido serviços deste tipo, sob a promessa de ganhos de tempo, precisão e escala na elaboração de documentos jurídicos. O que poderia tomar horas de um advogado (a), a partir da automação pode levar apenas alguns minutos.
Há também máquinas capazes de aprender a partir do contexto próprio da atividade jurídica. O sistema Sapiens, por exemplo, criado por procuradores da Advocacia-Geral da União (AGU), serve como um assistente virtual para a elaboração de petições em casos de demandas repetitivas.
O sistema foi criado com base em algoritmos capazes de aprender a partir de um grande volume de dados, as petições produzidas por procuradores da AGU ao longo dos últimos anos. No Sapiens, o programa de edição de texto é capaz de identificar, a partir das palavras digitadas por um procurador, a existência uma tese jurídica consolidada na AGU, sugerindo a inclusão de argumentos jurídicos, referências doutrinárias e decisões judiciais relevantes. Com base nas sugestões feitas, cabe ao procurador escolher se ele incorpora ou não a sugestão da máquina ao seu texto.
Já no contexto privado, a empresa Finch Soluções tem se destacado pela criação de sistemas inteligentes também baseados em algoritmos de aprendizado, capazes de extrair informações de documentos (e.g. nota fiscal), preencher formulários automaticamente, consolidar dados sobre processos judiciais, criar perfis decisórios de magistrados, dentre outras funcionalidades.
Dessa forma, tarefas que se baseavam na experiência do advogado ou de escritórios de advocacia, como a avaliação de risco em processos judiciais, encontram ferramentas eletrônicas quantitativas para a sua realização. Com base em dados extraídos de sentenças e acórdãos já é possível construir cenários mais precisos sobre a probabilidade de sucesso de uma demanda. Além das vantagens estratégicas evidentes derivadas destas ferramentas, cabe mencionar a possibilidade de uma melhor compreensão sobre a atuação do Poder Judiciário como um todo.
A construção do equilíbrio entre jurista e máquina demandará um domínio mínimo de conceitos na área tecnológica, o diálogo com profissionais do campo da engenharia e ciência da computação e uma compreensão razoável da dinâmica de funcionamento de sistemas complexos. Se ele, o direito, tem sido impactado fortemente por ela, a tecnologia, a relação entre eles será melhor construída na medida em que a comunidade jurídica estiver disposta a compreender as transformações em curso e se capacitar para conduzir o processo para alcançar os melhores resultados sociais.
Alexandre Pacheco da Silva é professor e pesquisador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP), onde coordena o Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação (GEPI).
Fonte: Valor Econômico- 20/7/2017-